O novo mito que ganha impulso com a efeméride de um ano do ataque às instituições republicanas de 8 de janeiro de 2023 é que a democracia brasileira venceu e está “inabalada”.
Não há dúvidas de que a tentativa de golpe com a ação de destruição das hordas fascistas não conseguiu impor uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem) que entregasse o poder às Forças Armadas e afastasse o então empossado presidente Lula.
No entanto, a democracia brasileira enfrenta uma profunda crise e continua agonizando. A derrota dos golpistas não representou, definitivamente, a redenção do nosso sistema político.
Essa normalização da crise política nacional serve somente a quem quer manter o atual estado das coisas. Talvez por se beneficiar do crescente conflito entre poderes. Talvez por temer que as suas raízes venham à tona e ensejem mudanças.
O Brasil é um país presidencialista, mas avança o fato consumado de que vivemos sob um parlamentarismo velado ou um semipresidencialismo. O conflito entre os poderes, que se agudizou nos últimos 10 anos, tem como vetor a crescente mutilação do poder do governo federal.
O Poder Judiciário e o Poder Legislativo têm tomado, sob a condescendência daqueles que hoje exaltam a democracia, atribuições políticas, econômicas e institucionais do Poder Executivo e usurpado a soberania popular expressa no voto.
É estarrecedora a sanha dos deputados e senadores para obter fatias cada vez maiores do Orçamento para emendas parlamentares. Transformaram-se num instrumento para que os congressistas aumentem sua influência nos seus redutos eleitorais, independentemente do governo de plantão.
Não há precedentes no nível de exposição dos ministros do STF, que intervêm na cena política em entrevistas nos jornais, programas de TVs, podcasts e redes sociais de forma cada vez mais banal. Depois da desmoralização da Operação Lava Jato, houve uma alteração de orientação do Judiciário, mas não aconteceram mudanças no sistema de Justiça.
Membros da cúpula das Forças Armadas, que tiveram participação no processo do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, atuaram para manter a prisão do Lula, fizeram parte do governo Bolsonaro e se envolveram no ataque de 8 de janeiro, continuam impunes.
O governo federal, sob o comando de um presidente da República eleito pela maioria dos eleitores e expressão da soberania popular, está cada vez mais refém do Congresso Nacional e do STF.
Nesse cenário, a burguesia mantém o controle da economia, joga a carta da “estabilidade econômica” e usa o Poder Legislativo e o Poder Judiciário para limitar a atuação do governo federal e bloquear o programa vencedor nas eleições de 2022.
O 8 de janeiro não foi o capítulo final da crise política nem a regeneração da democracia brasileira. A tentativa de golpe, inclusive, é consequência da dissolução do regime político. Enquanto não houver mudanças na estrutura de poder, que resgatem o sentido profundo da soberania popular, de que todo o poder emana do povo, nossa frágil democracia estará em risco.
É muito perigoso idealizar essa democracia em crise porque a frustração da população e a falta de uma alternativa ao colapso do sistema político e das instituições, forjados pela Constituição de 1988, podem levar o país a mais uma ofensiva da extrema-direita, muito mais violenta que o 8 de janeiro.
*Igor Felippe Santos é jornalista e analista político com atuação nos movimentos populares