“Mobilização feminina e da juventude derrotaram extrema direita na Polônia”, diz sociólogo ao DCM

Atualizado em 22 de outubro de 2023 às 16:02
Reunião do partido PiS. Foto: Elekes Andor/Wikimedia Commons

Se a semana foi de choque na Europa ocidental com dois atentados terroristas, a leste foi de alivio com a derrota do partido Direito e Justiça (PiS) nas eleições polonesas. Depois de dois mandatos com a extrema direita no poder, uma coalizão de centro-esquerda está em negociações para formar um novo governo.

O resultado foi celebrado na União Europeia, que estava em tensão aberta contra a Polônia, minimizada apenas pela guerra na Ucrânia, em meio à degradação do Estado de Direito em Varsóvia, principalmente com o aparelhamento do poder judiciário.

O que levou à derrota do PiS? Wojciech Rafałowski, sociólogo político na Universidade de Varsóvia, vê uma espécie de desgaste natural provocado por mais de oito anos de governo, mas também uma série de fatores inéditos nesta eleição.

Por um lado, a queda na adesão ao partido ainda mais à direita no espectro político do país. Por outro, uma mobilização recorde das mulheres e dos jovens, em reação a uma lei antiaborto e do agravamento dos problemas de moradia não resolvidos pelo PiS, escândalos de corrupção, gestão caótica da pandemia de Covid-19 e deserção do exército são alguns deles.

Em entrevista ao Diário do Centro do Mundo, o pesquisador polonês aponta uma interessante tipologia do eleitorado que ainda quer um terceiro mandato do Direito e Justiça. Apesar de não obter maioria suficiente para formar governo, o PiS obteve 38% dos votos, mantendo a posição de primeiro partido.

O perfil de “eleitores cínicos” e “fanáticos” pode contribuir a reinterpretar a visão que frequentemente se tem do eleitorado de extrema direita no Brasil, como se fosse um bloco homogêneo.

“Agora temos de mostrar ao mundo como restabelecer a democracia e o estado de direito depois do populismo de direita”, afirma. Como no Brasil depois de Bolsonaro, a Polônia deverá passar por uma reconstrução.

DCM: Havia uma expectativa de reeleição do governo de extrema direita da Polônia. O seu partido, Direito e Justiça (PiS), de fato obteve o primeiro lugar em número de votos, insuficiente para formar maioria e governo. O que aconteceu?

Wojciech Rafałowski: Não esperavam vencer no sentido de poder formar um governo. Os resultados das eleições foram muito similares aos números das pesquisas antes da eleição. As empresas de pesquisa fizeram um trabalho muito bom em prever os resultados finais. Isso não foi uma surpresa. Era esperado que obtivessem o primeiro lugar mas não o suficiente para formar um governo.

O que realmente surpreendeu foi em relação à verdadeira extrema direita. Esperávamos que ela obtivesse mais. Em julho, a ultradireita obteve 16% dos votos nas pesquisas e terminou com pouco mais de 7%.

O Direito e Justiça se enquadra no que chamamos de populistas de direita. Claro, ele é extremo em geral, mas no sistema polonês não é o mais radical. A questão era saber se a Confederação (extrema direita) teria votos o suficiente para formar uma coalizão com o Direito e Justiça.

DCM: Por que o partido Direito e Justiça não teve votos suficientes para governar?

Wojciech Rafałowski: Eles tiveram 43% dos votos em 2019. Eles obtiveram 35% agora, então perderam em torno de 8 pontos percentuais em quatro anos. Isso não é uma mudança extraordinária para um partido que governou durante uma pandemia, inflação, crises e medidas impopulares. É surpreendente que ele só tenha perdido 8 pontos em quatro anos.

Provavelmente o principal mecanismo ao qual podemos atribuir essa derrota é que eles fracassaram ao tentar dominar a agenda eleitoral com os temas deles. Existe uma teoria muito proeminente na ciência política, a “issue ownership” (propriedade de assunto), que se refere a um contexto em que determinados atores dominam uma eleição com temas seus e a vencem.

O Direito e Justiça conseguiu fazer isso muito bem nas últimas duas eleições. Eles conseguiram definir a situação de um modo favorável a eles. Eles conseguiram fazer as pessoas entenderam-na como eles queriam e votar neles.

No caso atual, eles estavam lutando para encontrar um tema que lhes pertencesse. Não encontraram. Eles testaram determinados assuntos. Discutiram por alguns dias e o assunto morreu. Em agosto resolveram fazer um referendo. Eles queriam usar o referendo para fazer campanha para os temas deles.

As perguntas foram manipuladas e articuladas de um jeito que seria favorável para eles. As perguntas eram sobre segurança e migração. No início de setembro, um escândalo veio à tona.

Basicamente, o governo e as embaixadas montaram um esquema para vender vistos poloneses para pessoas no Oriente Médio e da África entrarem no espaço Schengen (espaço de livre circulação de pessoas na União Europeia), basicamente uma forma corrupta de permitir a imigração ilegal ou indesejada dentro da União Europeia.

Basicamente, eles construíram sua credibilidade como sendo firmes contra a imigração, dizendo ‘não queremos ninguém, não queremos refugiados’ e então foram pegos vendendo vistos para as mesmas pessoas cujas chegadas à Polônia eles queriam impedir. Foi um duro golpe em sua credibilidade em um tema que era deles e muito importante para o eleitorado deles.

O segundo golpe veio a apenas três dias antes da eleição. 12 militares de alta patente renunciaram. Não sabemos as razões pelas quais renunciaram. Podemos especular que foi porque a política polonesa estaria tentando se ingerir no exército. Então se Direito e Justiça não tem nem boas relações com o exército, uma questão de segurança, seu principal slogan é minado.

Em termos de campanha, esse foi o golpe de misericórdia. Mas o processo de perder apoio ocorreu nos últimos dois anos. Em dois temas, em particular. Primeiro: a lei sobre o aborto. A mudança veio não do parlamento, mas de um tribunal constitucional. Mas todo mundo sabe que o tribunal constitucional está sob o controle do partido Direito e Justiça. Eles implementaram uma lei radicalmente antiaborto, o que causou diversas mortes de mulheres que não tinham capacidade para carrega-los, mas foram forçadas a fazê-lo.

Outra questão foi a inflação, mesmo se a mais alta foi nos anos 1990, depois da queda do comunismo. A pandemia parece ser outra questão hoje esquecida, mas transformou a estrutura do eleitorado polonês. A Polônia teve um alto número de mortos. Muitos dos eleitores do Direito e Justiça não estavam mais lá.

O PiS não resolveu os problemas da juventude, que se mobilizou. Foi a primeira vez que a juventude ultrapassou 70% de participação. Esperava-se que fosse 60% e ficaríamos entusiasmados se fosse 65%. Mas foi 70% e esse foi provavelmente um dos maiores choques da eleição.

As mulheres estavam mobilizadas. A participação feminina foi maior do que a masculina, o que é inabitual. A participação dos jovens entre 18 e 29 anos foi maior do que a das pessoas acima de 65, o que nunca tinha acontecido.

Não foi apenas uma questão de mais tolerância e abertura, mas de proteger o pertencimento da Polônia à União Europeia, o que parecia ameaçado pelo governo do Direito e Justiça, que não dizia formalmente que deveríamos sair da União Europeia, mas agiram como se estivéssemos saindo. Eles rejeitaram a influência do projeto de valores da União Europeia. Esse é o problema aqui.

Outro grande problema para a juventude agora é a moradia. Para muitos, os preços de aluguel e compra de apartamentos tornaram irreais a ideia de um dia comprar um apartamento. Esse é um problema que ocorre em todo o mundo ocidental, o mesmo problema ocorre na Europa e nos Estados Unidos e não foi resolvido na Polônia. Os jovens querem uma mudança.

O pesquisador
Wojciech Rafałowski. Foto: Anna Nowak

DCM: Como avalia a gestão da pandemia de Covid-19 pelo PiS?

Wojciech Rafałowski: Caótica. De um modo geral, em sociologia usamos a noção de “isomorfismo mimético”, o que basicamente quer dizer que se há uma solução para um problema e alguém a tenta, outros tentarão reproduzi-la. Numa situação de grande incerteza, vão repeti-la. Foi o que ocorreu na pandemia através do mundo.

O Direito e Justiça basicamente seguiu outros países e repetiu o confinamento, a educação à distância e todas essas políticas com um certo atraso em relação a esses outros países. Mas sendo realistas, eles sabiam que certas políticas não seriam obedecidas na Polônia.

Algumas pessoas dizem que os poloneses têm um gene anárquico. A Polônia não teria o mesmo tipo de confinamento que a Nova Zelândia ou a Austrália.

Ninguém ligaria para isso. Tentaram fazer isso na noite do ano novo, impedindo as pessoas de saírem de casa, mas as pessoas saíram mesmo assim. A polícia não incomodou e deteve ninguém. Não era possível gerir as coisas daquele modo.

Houve muitas mortes como resultado, nosso “lockdown” não era tão sério como em outros países, aumentando a possibilidade de disseminar o vírus. Por outro lado, nosso sistema de saúde é muito suscetível a ficar sobrecarregado.

Se você vive numa grande cidade, tudo bem. Mas se você mora longe, numa área mais remota, você terá grandes dificuldades para ter acesso a um especialista. Se o sistema de saúde enfrentar uma grande crise, ele não terá capacidade.

As pessoas tampouco tinham uma grande vontade de seguir as grandes limitações propostas. Basicamente isso faz parte da mentalidade polonesa, resistir a regras. Eu lembro que no meio da pandemia eu fui a um funeral de um parente, que não morreu de Covid mas de outra causa. Ninguém estava usando máscara. Nas áreas rurais, não há uma cultura de seguir essas regras. Essas regras são geralmente ignoradas. Claro que isso gerou consequências para a saúde pública. As autoridades sabem que as pessoas vão resistir.

DCM: Apesar de todos esses aspectos econômicos e sociais, como a lei antiaborto, o alto numero de mortes durante a pandemia, o Direito e Justiça manteve um considerável apoio…

Wojciech Rafałowski: O PiS tem dois tipos de eleitores. O primeiro tipo de eleitor é o de fanáticos, que são muito religiosos, fiéis à Igreja, e devotos ao Direito e Justiça e seu tipo de vida. Eles apoiam a cultura representada pelo Direito e Justiça. Eles são em torno de 15%, um bom nível para criar um partido e mantê-lo, mas não o suficiente para ganhar.

A outra parte é mais flutuante que meus colegas chamam de “eleitores cínicos”, que basicamente não gostam do Direito e Justiça, não gostam de seus líderes, não gostam da visão de extrema direita radical das coisas, não gostam da religiosidade, mas gostam de uma coisa: ajuda financeira do governo, seguridade social no mais alto nível, como nunca antes. Isso é o que o Direito e Justiça usou para conquistar o eleitorado. Essas pessoas não gostam o Direito e Justiça, não gostam do líder do partido, acham-no nojento, mas são pagos.

São principalmente pessoas pobres, porque isso importa para eles. A igualdade basicamente diminuiu durante o governo Direito e Justiça. Seus programas são voltados basicamente para pessoas que têm filhos. Eles recebem benefícios para ter e criar seus filhos e têm medo de perder essas ajudas.

DCM: Muitas pessoas na Polônia enfrentam aposentadorias miseráveis, tendo a necessidade de continuar trabalhando. Quais foram os resultados econômicos e sociais do governo PiS?

Wojciech Rafałowski: Entre as pessoas aposentadas, há as que recebem altas e baixas aposentadorias, depende do momento em que a pessoa se aposenta.Depende do setor em que se trabalhou.

O PiS implementou a 13a e 14a aposentadoria, que são pagamentos adicionais por ano. É assim que queriam atrair os aposentados. Eu mesmo e todo mundo que trabalha em universidades e escolas recebeu um bônus uma semana antes da eleição. Isso é claramente um jeito de nos convencer a apoiar o governo. Algumas pessoas se sentiram ofendidas com o montante recebido, então não funcionou.

A pobreza é um problema na Polônia, mas creio que a questão é mais relacionada à incerteza. O PiS reduziu a desigualdade, o que é um grande potencial para manter seu apoio. A Polônia se desenvolveu tremendamente nos últimos 20 anos. Então é claro que há desigualdades, pessoas que ainda são excluídas de benefícios.

DCM: O partido que deve formar um novo governo pertence ao liberalismo econômico. Eles devem reverter a desigualdade e a pobreza na Polônia?

Wojciech Rafałowski: Creio que provavelmente não. Prevejo que vão reduzir alguns impostos, mas não que devam reduzir o coração das políticas sociais porque perderiam apoio imediatamente. Eles não podem revertê-las. Eles podem repará-las, mudá-las. Eles não querem perder apoio imediatamente.

A coalizão de três partidos que deve formar o próximo governo inclui a esquerda. Parte da coalizão é de um partido forte de esquerda socialdemocrata. Remover os beneficios seria um suicídio político.

DCM: O PiS dominou a justiça e também a imprensa. O que vai acontecer agora com esses dois setores da sociedade?

Wojciech Rafałowski: Quanto à mídia, a questão mais previsível se refere à televisão pública. Os mecanismos ainda não estão claros para nós. Eles dizem que querem mudanças mas não querem revelar seus métodos porque o PiS vai tentar evitá-las. Portanto há um mistério, mas creio que revelarão rapidamente depois de formado o novo governo.

Deve haver um movimento bastante radical em relação à televisão pública, onde há uma confusão. Eles sabem que algo vai acontecer com eles mas não o quê. Eles se comportam de modo bastante caótico agora. Eles não mudaram de método. Ainda atacam Donald Tusk, mas pararam de atacar a esquerda.

Quanto à justiça, algumas mudanças legais vão ter de acontecer. As leis esperadas pela União Europeia precisam ser aplicadas e a nova coalizão tem advogados muito bons que vão asessorá-los nesse processo.

DCM: O que o PiS havia feito com a justiça e a imprensa?

Wojciech Rafałowski: Sobre a estrutura do nosso sistema judiciário, há tribunais locais, para recursos e afins, e tribunais constitucionais, que pode ser provocado para sanar dúvidas sobre se determinadas ações ou leis são constitucionais ou não.

Os membros do tribunal constitucional são indicados pelo parlamento e formalmente indicados pelo presidente. Há uma bagunça em relação a ele. Antes de perder seu poder em 2015, a Plataforma Cívica (hoje oposição) nomeou três juízes e dois novos juizes deveriam ter sido aprovados pelo parlamento depois da eleição de 2015. Quando o Direito e Justiça assumiu, eles declararam as nomeações anteriores ilegais e nomearam novas pessoas nesses cargos.

O tribunal constitucional foi paralisado por conflitos internos e nada pode ser feito agora. Não se sabe o que é legal ou não.

Em outras cortes, eles adicionaram uma corte paralela. Em tribunais de nível mais baixo, os juízes nomeados não sabem se suas nomeações são legais ou não. Há um caos. Não se sabe se as sentenças que eles emitem são legais ou ilegais.

Há um órgão chamado comitê disciplinar, que está basicamente minando a independência de juízes, inclusive por razões políticas. Eles perseguem juízes que agem em contradição com a linha do partido (Direito e Justiça).

DCM: Esse comitê disciplinar foi criado pelo Direito e Justiça?

Wojciech Rafałowski: Sim, por sua maioria (parlamentar).

DCM: Que paralelos você vê com o governo de Jair Bolsonaro?

Wojciech Rafałowski: Meu conhecimento sobre Bolsonaro é limitado. Seu mandato já acabou, certo?

DCM: Sim. Ele perdeu a última eleição.

Wojciech Rafałowski: Por quantos mandatos ele governou?

DCM: Apenas um.

Wojciech Rafałowski: Então ele foi tirado do poder mais rápido do que o Direito e Justiça. É difícil para mim comparar porque eu não conheço o estado de direito no Brasil. Eu sei que ele era mais definitivamente radical do que o Direito e Justiça, porque este nunca negou realmente que havia uma pandemia. Bolsonaro fez isso.

Eu o compararia mais a Donald Trump do que a Kaczynski ou Andrzej Duda. Penso que são tipos diferentes de pessoa. Claro que eles todos se enquadram na definição de populismo e semeando o caos.

Nós estabelecemos um estado de direito e, 30 anos atrás, mostramos ao mundo como nos livraríamos do comunismo. E agora temos de mostrar ao mundo como restabelecer a democracia e o estado de direito depois do populismo de direita. Acho que o futuro vai mostrar o que pode ser feito. Mas é muito difícil traçar padrões de um país para o outro, pois as culturas políticas são diferentes.