Nada parece mais simbólico do que a realização e divulgação da entrevista do juiz Sergio Moro no mesmo dia em que o Senado Federal decidiu salvar Aécio Neves. “Acho que Lava Jato vem numa linha de diminuição da impunidade de crimes praticados por poderosos no Brasil, e isso é muito positivo”, afirmou Moro, ao mesmo tempo em que os senadores, por maioria de voto, decidiam não aplicar as medidas sentenciadas pelo Supremo Tribunal Federal contra Aécio Neves, que pediu e recebeu 2 milhões de reais do empresário Joesley Batista, a quem ofereceu vantagens no governo de Michel Temer.
Sergio Moro foi um entrevistado dócil, o que se pode perceber não pelo que ele disse, mas pelo que permitiu que se fizesse. A entrevista termina com a cena em que ele entra em uma sala, abre e fecha um balcão, provavelmente o do cartório de sua vara, e se dirige para uma sala, em princípio a dele.
Toda essa cena é montada, para criar um ambiente de naturalidade para a entrevista. Nem todos os entrevistados se submetem a participar de cenas assim, apenas os mais dóceis, que querem aparecer e fazem o que lhe pedem. Talvez Gerson Camarotti devesse aproveitar essa disposição do juiz para fazer as perguntas mais incisivas, que faltaram na entrevista.
Ao falar sobre por que recusou a produção de provas em alguns processos, o juiz deu, muito provavelmente num ato falho, a deixa para a pergunta que não foi feita. O repórter perguntou como Moro via a reclamação dos advogados de que não tem sido assegurado o direito de produção de provas. Moro respondeu:
“No processo penal, o juiz tem a responsabilidade de supervisionar a produção de provas das partes, e a lei estabelece que o juiz pode, eventualmente, indeferir provas que sejam requeridas pelas partes quando entender que elas não são necessárias para o processo. E isso é o que acontece em qualquer vara criminal. É muito comum. O que acontece é que, eventualmente, nesses casos, quando o juiz — eu, no caso — profere alguma decisão indeferindo prova, a parte que teve a prova indeferida muitas vezes tenta supervalorizar. ‘Ah, houve cerceamento de defesa’. Mas, quando vamos ver, a prova é absolutamente desnecessária. Muitas vezes, as pessoas querem ouvir testemunhas no exterior que nada sabem sobre os fatos, e muitas vezes é uma maneira de ganhar tempo e depois reclamar de longas prisões preventivas, Então, isso é muito comum. Não tem nada de não usual dentro dos processos criminais”.
A resposta é mais longa, mas esses trecho basta para analisar não o que a fala do juiz revela, mas o que esconde. A testemunha que mora no exterior, cujo depoimento foi indeferido por Moro, é Rodrigo Tacla Duran, que a defesa do ex-presidente Lula pediu para ouvir. Era a hora de Camarotti fazer a pergunta, mas o tema e o nome — Rodrigo Tacla Duran — parecem proibidos na velha imprensa brasileira — no exterior, por onde a Odebrecht andou, Tacla Durán é assunto recorrente. Uma emissora de TV do Panamá deu plantão em frente a um endereço de Durán na Espanha para tentar entrevistá-lo.
Durán teria, sim, o que dizer num processo sobre Lula. Por exemplo: ajudou na transferência de dinheiro para o ex-presidente brasileiro assim como fez para autoridades de outros países? Sendo o negócio de Durán ajudar nesse tipo de operação clandestina, seria muito interessante saber esta resposta.
Durán poderia também desmontar a farsa das delações premiadas, base do trabalho na jurisdição de Moro. Em um livro que permaneceu durante algum tempo na internet, Durán conta como, quando e por que foi alvo das investidas de um amigo de Moro — e advogado em pelo menos um caso —, Carlos Zucolotto Júnior, numa negociação para obter vantagens em uma delação premiada.
Mas esclarecer temas espinhosos como este passou longe na entrevista anunciada com estardalhaço pela Globonews. Há outras furos: a foto de Moro com Aécio Neves. O juiz se saiu bem na resposta que deu, sem confrontação. “Não há nada contra o senador tramitando na jurisdição de Curitiba, já que ele tem foro privilegiado”. Mentira. Desde os depoimentos do Alberto Youssef, em 2014, sabe-se que Andrea Neves, irmã de Aécio, operava para o irmão no caixa 2 gerado pela estatal Furnas. Aécio tem foro privilegiado, mas Andrea não, e ela nunca foi chamada ou investigada na jurisdição de Curitiba.
No caso da foto, a pergunta era outra: ao aceitar a homenagem da revista Istoé — uma publicação sobre a qual recai suspeita fortíssima de vender matéria, inclusive para Aécio —, Moro estava no lugar errado, na hora errada e com as companhias erradas. Isso é que teria de ser questionado.
O Código de Ética da Magistratura recomenda uma vida social mais contida da parte dos juízes. Este é também um problema menor diante de outros vazios que restaram da entrevista de Moro: as ilegalidades da Lava Jato, a começar pela sua origem.
Moro tinha competência territorial para tocar um processo que diz respeito a uma empresa com sede no Rio de Janeiro? Teria usurpado competência do Supremo Tribunal Federal, ao investigar deputado federal? Por que permitiu escutas clandestinas? Por que vazou conversas telefônicas da então presidente Dilma Rousseff? Por que não mandou Youssef de volta para a cadeia quando soube que ele não cumpria o acordo de delação premiada, o primeiro, em 2004? Por que grampeou um escritório de advocacia? Por que aceitou denúncia anônima?
Estes são alguns dos exemplos.
Mas Moro é contra o vale tudo na Justiça. Pelo menos nos processos que atingem o PSDB. O que ele disse quando o repórter perguntou o que achava da anulação da operação Castelo de Areia, por trabalhar com provas ilícitas:
— Os agentes envolvidos na aplicação da lei não podem, a pretexto de cumpri-la, violá-la.
Moro disse na Globonews o que quis e o que lhe convinha. Insinuou que sofreu ameaças, mas preferiu “pular”essa questão. Se o juiz sofreu ameaça, é muito grave e os brasileiros precisam saber disso, em detalhes.
Mas, ao que parece, ao “pular” a questão, ele criou o cenário perfeito para quem quer passar a imagem de que é um homem que enfrenta poderosos, com o risco da própria vida ou cargo.
Moro é blindado. Suas decisões mais polêmicas são, em geral, confirmadas pelas instâncias superiores e recebe salário muito acima do teto constitucional, como mostrou um levantamento feito por um professor da Universidade Federal do Tocantins.
Moro é parte do poder real.
Que poder maior existe do que aquele que consegue invalidar 54 milhões de votos e derrubar uma presidente eleita?
Sem a Lava Jato, esse movimento teria êxito?
Da entrevista para Globonews, restou o mito: o homem que liderou os processos que fizeram do Brasil um país com menos impunidade.
Isso dito no dia em que Aécio Neves se salvou no Senado e Michel Temer avança para se livrar de mais uma denúncia criminal.
Parece piada.