Publicado originalmente em O Povo
Doutor em Direito Processual Penal e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul, Aury Lopes Jr. afirma que o pacote anticrime apresentado ao Congresso pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, tem aspectos positivos, como o “informante do bem”, e negativos, como o “plea bargain”. Na sua totalidade, porém, Lopes avalia que se trata de um projeto “autoritário”. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
O POVO – O pacote anticrime do ministro Sergio Moro foi apresentado fatiado ao Congresso. Como o senhor avalia o projeto?
Aury Lopes Jr.- Essa questão estratégica de fatiar em três o projeto já causou uma certa surpresa, deixando o crime de caixa 2, que é algo que ele sempre considerou muito sério, separado porque pode haver resistência (no Congresso). Sobre isso, tem um detalhe que os parlamentares não consideraram: a lei penal não tem retroatividade. Então, se criminalizarem o caixa 2, é daqui pra frente. Esse pacote é uma tentativa de melhorar a legislação, mas ele comete uma série de erros e pecados. Primeiro, ele desconsidera tudo que existe tramitando em termos de projeto. Inclusive, desconsidera que nós temos um Código de Processo Penal (CPP) inteiramente novo tramitando há dez anos e que deveria ter sido votado e aprovado. Então, ele parte de um marco zero para propor (o pacote), desconsiderando todo o debate que já se fez sobre o CPP, o processo penal e a execução penal e nos quais já se gastou muito dinheiro para se elaborar. Ele também faz um projeto a la carte, ou seja, é a partir da posição dele, sem se submeter a uma justificativa. O pacote incorre ainda num outro erro, que é o das reformas pontuais. Nós temos já no CPP, que é de 1941, dezenas de reformas pontuais. Você altera alguns artigos e mantém aquela estrutura, o que gera uma colcha de retalhos sem consistência sistêmica. O que nós precisamos não é de mais uma reforma no CPP, que já teve várias, ou no Código Penal, que já teve várias, mas de códigos inteiramente novos à luz da Constituição e que estejam adequados à nova exigência de eficiência da Justiça. Além disso, há um pouco desse fetiche de achar que fazer lei vai resolver o problema. Se o problema fosse lei penal, não teríamos problemas. Por exemplo: a Lei dos Crimes Hediondos (a 8.072). Se resolvesse, não teríamos mais crimes de estupro nem de homicídio. É uma fórmula já conhecida, é mais do mesmo. Mais lei penal, mais pena, quando se sabe que isso tem um efeito “sedante”. Não é uma resolução de problema. O problema da violência urbana é bem mais complexo.
OP – Apesar das fragilidades que o senhor aponta no projeto, há socialmente um apoio a essa iniciativa do Moro, não?
Lopes Jr. – Nós temos dois problemas sérios. Primeiro: as pessoas querem uma justiça criminal mais ágil, e isso está correto. Então nós precisamos ter um Código de Processo Penal novo para dar mais eficiência, racionalizar recursos etc. O projeto está suscetível de ser aprovado por conta da insatisfação das pessoas. Mas não é só a lei que vai resolver. Precisamos de outras coisas. Segundo ponto: é claro que é um governo que acabou de ser eleito, que tem uma maioria no Congresso, ao que tudo indica, e que tem tendencialmente o norte de aprovar essas medidas. Mas não acredito que passem exatamente como estão sendo propostas, porque elas serão discutidas. E, com esse fatiamento, e a votação do projeto da reforma da Previdência antes, o projeto Moro fica para o segundo semestre, no mínimo.
OP – Como o senhor avalia o processo de elaboração do pacote?
Lopes Jr. – Essa proposta é a opinião pessoal dele. Ela é, sim, um pouco autoritária, na medida em que não foi submetida a um amplo debate. Será agora. E é claro que é uma medida que tem um apelo popular e populista bastante evidente. Mas as pessoas precisam saber que o problema da violência urbana é muito mais complexo do que se fazer lei penal, e isso o projeto não ataca.
OP – Um dos pontos mais importantes do projeto é a previsão da prisão em segunda instância. Como o senhor vê essa antecipação?
Lopes Jr. – O projeto Moro, entre outras coisas, quer legislar sobre matéria que o Supremo já disse que é inconstitucional. Por exemplo, a vedação de concessão de liberdade provisória e o regime obrigatório fechado. O Supremo já disse é inconstitucional, e ele legislou por cima. Não vai passar. Ele também quer legislar sobre prisão em segundo grau, que é uma matéria de caráter constitucional sobre a qual o Supremo ainda está dividido e que vai ser objeto de debate com as duas ações declaratórias de constitucionalidade que têm que ser votadas. Se o Supremo disser que pode a prisão em segundo grau, o projeto não tem sentido nenhum. Não precisa dele, já que o STF autoriza. Se o Supremo disser que não pode a prisão em segundo grau, o projeto Moro, nesse ponto, se esvazia completamente. Então ele não tinha que ter entrado nessa esfera, que é uma esfera constitucional para a qual o Supremo tem primeiro de indicar o norte.
OP – Além da prisão em segunda instância, que outros pontos o senhor citaria e que devem enfrentar alguma resistência?
Lopes Jr. – O projeto tem pontos bons e pontos ruins. Por exemplo: a prisão obrigatória após julgamento em primeiro grau é um grande erro. É primeiro grau, ainda tem recurso. Ele argumenta sobre a soberania do júri, que não se presta para justificar prisão em primeiro grau. Soberania do júri é outra coisa. Eu fiz uma pesquisa rápida, e no mínimo 55% das decisões que mandam alguém a júri são revertidas no julgamento do recurso de sentido estrito. Se vingasse o projeto Moro, nós já teríamos aí 55% sendo anulados. Um custo altíssimo. Mas tem outras medidas que são interessantes. A questão do “whistleblower”, que é o informante do bem. É bem interessante. É positivo nesse ponto, que é favorecer e facilitar canais para que as pessoas possam, principalmente servidores de estatais, informar práticas abusivas. É uma medida perfeitamente factível e positiva, mas tem outras que precisam ser debatidas melhor.
OP – O “plea bargain”, por exemplo?
Lopes Jr. – A medida mais grave desse pacote é o “plea bargain”, até porque representa o fim do processo penal brasileiro. Você pode ter um espaço de negociação, mas é preciso um limite. O Moro faz uma importação a la carte do modelo americano, sem limite de pena, quando hoje os Estados Unidos são a maior população carcerária do mundo por conta da negociação sobre a pena. Isso é a negação da existência do processo. Não se discute se aquele fato é verdadeiro ou não, o que importa é que você chegue num acordo comigo. Nós deixamos de lado toda a base epistemológica do processo e do sistema de administração da Justiça. Nós vamos sair de um extremo, que é ter um processo moroso e ultrapassado, para não ter processo nenhum. Isso vai fazer com que a população carcerária brasileira exploda. Não existe liberdade de negociação. As pessoas, e isso está provado também nos EUA, confessam crimes que não praticaram com medo de uma pena gravíssima.
OP – Que efeitos isso teria no Direito?
Lopes Jr. – Primeiro, acaba com uma garantia do cidadão, que é o processo. O processo, que é um instrumento de garantia, passa a ser um mal-estar, um estorvo. Quando os juízes são cobrados por maior produtividade, uma negociação é a solução pra isso. É uma solução para o entulhamento (de processos). E quem não quiser negociar e quiser o processo, vai ser um estorvo.
OP – O projeto anticrime também trata do excludente de ilicitude. Concorda com essa medida?
Lopes Jr. – Bom, isso tem sido chamado como “uma licença pra matar”. O Moro foi infeliz na disciplina que pretende dar ao excesso da legítima defesa ao colocar ali cláusulas gerais, genéricas, extremamente subjetivas, como é o caso do medo. A proposta dele de alteração do artigo 23 diz: “O agente policial que previne agressão ou o risco de agressão”. Pode ser imaginária, ilusória, e você está legitimando uma morte, por exemplo, a partir de um conceito completamente vago. O que é medo? É absolutamente subjetivo.
OP – A quem caberia interpretar isso?
Lopes Jr. – O julgador. O juiz, se for no início, ou, se for para júri, os jurados. Mas a tendência aqui é o próprio juiz, ao receber a denúncia, não receber a acusação. Ou o Ministério Público não acusar. Alguém vai ter que interpretar se é medo ou não. E aí você abre um espaço impróprio de discricionariedade muito perigoso.
OP – Até que ponto esse conjunto de medidas do pacote é resultado do acúmulo da Lava Jato?
Lopes Jr. – Na verdade, o Moro está trazendo a experiência que ele teve na Lava Jato para transformar em projeto de lei, que vai ser aplicado para todo e qualquer crime, ainda que a preocupação dele seja com o crime organizado e os hediondos. Mas se aplica para todo mundo. Nunca se fez tantos acordos de delação premiada no mundo como se fez na Lava Jato. E a operação, em que pese ter muitos aspectos positivos, também cometeu muitos atropelos de regras do jogo, sem falar de penas desproporcionais para quem não fez acordo.
OP – Os procuradores da Lava Jato afirmavam que a maior parte dessas negociações era feita com pessoas em liberdade.
Lopes Jr. – Eu não concordo com esse argumento. Os acordos são sigilosos, e nós não temos acesso a toda informação. Mas, empiricamente, a imensa maioria fez acordo de delação para não ser presa. É o caso do acordo de colaboração do Guido Mantega. Faz a colaboração para não ser preso. É o caso do Palocci, por exemplo. Uma das cláusulas de negociação foi exatamente essa: soltar para fazer o acordo. Houve uma degeneração da prisão cautelar para forçar acordos na Lava Jato, sim.
OP – Isso tende a se repetir caso o “plea bargain”?
Lopes Jr. – Sim, agora em maior escala. Se o “plea bargain” passar, nós vamos ter a prisão cautelar sendo usada como instrumento de coação para negociação.
OP – O ministro Moro mudou de opinião sobre a gravidade do caixa 2. Como viu esse episódio?
Lopes Jr. – Um juiz tem de corresponder a expectativas jurídicas. Como juiz, não tem de corresponder a expectativas políticas ou sociais. Ele pode ter uma posição contramajoritária. Agora, como ministro, ele tem de corresponder às expectativas políticas e populares. Então está ocorrendo uma transição do Moro juiz para o Moro ministro. E aqui nós vamos ter significativas mudanças de posição. Talvez até, amanhã ou depois, ele diga: não leiam o que eu decidi no passado. É uma nova situação que vai exigir uma nova postura.
OP – Isso vai desfavorecer o Moro juiz ou o Moro ministro?
Lopes Jr. – Ele vai ser julgado. Até agora, ele julgou. Ele vai ser julgado como Moro ministro e vai pagar um preço pelas decisões políticas que vai ter que tomar.