Morte de crianças e suspeita de uso excessivo de agrotóxico põe em xeque a “sustentável” Açaí Amazonas

Atualizado em 10 de setembro de 2020 às 9:22
(Funcionários usam agrotóxico na Fazenda Macupixi/Foto: Fábio Zuker/Amazônia Real)

PUBLICADO NO AMAZÔNIA REAL

POR FÁBIO ZUCKER

No ensolarado início de tarde do dia 21 de agosto de 2019, o salão da paróquia Pio XII, um anexo à igreja católica de Santo Antônio, no município de Alenquer, no oeste do Pará, estava lotado. Cerca de duzentas pessoas, entre jovens e adultos, disputavam espaço para debater sobre o uso de excessivo de agrotóxico, os impactos socioambientais do veneno e a atuação da empresa Açaí Amazonas (antes chamada de Polpas do Baixo Amazonas), de propriedade do Grupo Vacarro, e que se classifica no agronegócio como “a mais moderna e sustentável produtora de açaí do mundo”.

O grupo Vacarro é um conglomerado de indústrias dos ramos do agronegócio, materiais de construção e logística da região Sul do Brasil. No oeste paraense, a empresa Açaí Amazonas tem um longo e conflituoso histórico de atuação desde o início dos anos 2000: acusações de concentração fundiária, desmatamento; práticas que, segundo os moradores locais, ameaçam as comunidades de agricultores tradicionais. Por isso o anseio de todos em participar da reunião na igreja Santo Antônio.

Antônio Júlio Souza Sena era um deles. Um homem forte, com acentuados traços afro-indígenas. É agricultor e pescador. Antônio vivia na comunidade de Mediãà beira dos córregos d’água próximos à Fazenda Macupixi, pertencente à Açaí Amazonas, mas há cerca de três anos veio para uma ocupação, dentro de uma área reivindicada pela empresa. É difícil descrever o que é entrevistar um homem a quem lhe faltam palavras para falar da morte de seu filho.

“Eu moro próximo ao açaí, tivemos uma mudança pra essa localidade, onde teve uma ocupação. E aí chegamos pra lá. Aí próximo à fazenda Açaí [Amazonas] tínhamos contato com um igarapé. Mas a gente não sabia se esse igarapé tinha acesso de veneno [agrotóxico]. Isso foi questão de um mês, a gente estava lá. E aí meu filho apresentou uma febre alta, dor de cabeça, muito forte. E a gente utiliza aquela água. Não só ele, mas todo mundo que estava ali, situado naquele lugar, utilizava aquela água. Quando alguém foi falar pra gente que aquela água era contaminada por veneno, a gente já tinha utilizado água”.

Os olhos de Antônio Sena se enchem de lágrimas. Ficam vermelhos. Ele parece buscar forças para continuar:

“Apresentou essa febre alta. Essa dor de cabeça muito forte no meu menino. Rapidamente eu corri, e trouxe ele para o hospital, aqui em Alenquer. Foi atendido, aí o médico, despacharam a gente para Santarém. Chegamos lá, e fomos atendidos por um médico. Quando chegou em Santarém, ele não falava mais. Ele começou a perder sangue desde aqui”, completa.

– E o que aconteceu? – pergunto a ele.

“Aí primeiro morreu o filho da minha vizinha. Porque justamente ele tinha contato bastante junto com meu menino no igarapé. Tomavam banho. Eles conviviam la. Porque sabe como é que é, o igarapé é uma coisa divertida. Eles viviam lá. Então rapidamente adoeceu, foi questão de oito dias. Aí o segundo médico disse assim ó: ‘infelizmente o que consta, nos exames aqui, é que seu filho está acabando de paralisar o rim, e o que está faltando só é paralisar o coração. E na realidade, o problema do seu filho, é um problema de intoxicação’”.

Pergunto se até então ele tinha alguma informação sobre contaminação ou intoxicação na região.

“Não, porque a gente não tinha conhecimento com isso. Depois que meu filho faleceu, a gente que convivia ali, sentimos problemas. A gente não sentia fome. Cresceu a barriga de todo mundo. Uns meninos foram hospitalizados, os filhos do meu irmão, que convivia no igarapé, também. A gente mesmo, adulto, não tinha vontade de comer. A barriga cresceu. A gente sentia um negócio assim, que estava inchado”, afirma Antônio.

Antônio relata que a prefeitura de Alenquer teria capturado mais de 120 mosquitos de febre amarela na região. Segundo sua esposa, Edineuza Rodrigues da Costa, seu filho não era vacinado. Ela não gosta de falar da morte do filho: “nada do que eu disser vai trazer meu filho de volta”, diz.

“Mas se fosse isso mesmo, teria aparecido muito mais gente doente por aqui, e não só os dois. Eu passo dias caçando nesse mato e nunca vi nenhum macaco morto”, argumenta Antônio. Pese a ausência da vacina, Edineuza também é relutante em acreditar que seu filho tenha sido vítima de febre amarela. “Tinha um monte de criança sem vacina, e morreram logo os dois que nadaram no igarapé no dia que jogaram veneno”, afirma.

Durante a reunião na igreja, outro comunitário da região escuta a conversa, de longe, e pede para participar. Com medo de represálias por parte da empresa, solicita não ser identificado. Ele endossa a narrativa de Antônio, contando com receio e olhar para baixo, um pouco desconfiado. Receio, olhares para baixo e um pouco desconfiados, aliás, se repetiriam ao longo das conversas.

“No momento das mortes, que acusam de veneno… não têm dúvidas que não seja isso. O rapaz que dirigia o trator que joga o agrotóxico dentro do açaizal estava jogando por onde passa o igarapé. Quando ele terminou, ele veio, e avisou a irmã dele, que morava próxima do igarapé, também na ocupação, e disse: ‘olha, não deixa teus filhos irem pro igarapé que nós jogamos um veneno muito perigoso ali pra cima, e vai descer no Igarapé’. Foi por isso nós ficamos sabendo”.

Os resultados finais dos exames sobre as causas da morte de Rolian da Costa Sena nunca chegaram. Ele faleceu no dia 22 de março de 2017, aos dez anos de idade. Seu amigo de brincadeiras, Thiago de Oliveira Cunha, com quem vivia junto, “grudado”, como coloca Edineuza, morreu oito dias antes, segundo os comunitários.

Antônio e Edineuza afirmam o desejo de exumar o corpo do filho para saber a real causa de sua morte. Este é um anseio compartilhado por grande parte dos comunitários que vivem ao redor da fazenda da Açaí Amazonas.

As suspeitas de Antônio e Edineuza são endossadas por muitos outros comunitários. Há diversos relatos que apresentam ceticismo quanto à tese da empresa e da prefeitura, de que os meninos teriam morrido por conta de febre amarela.

Geana Bel, Agente Comunitária de Saúde, originada da comunidade Macupixi e que atende em Mediã desabafa: “nós chamamos a vigilância em saúde, a vigilância veio, fez a vistoria da água. Eu pedi o laudo para eu ver a água que eles tinham analisado e não quiseram me mostrar”.

No atestado de óbito de Rolian, consta, entre outras causas: choque hemorrágico, coagulação intravascular disseminada, insuficiência renal aguda, insuficiência hepática. Não há menções sobre o que teria levado o garoto a desenvolver este grave quadro clínico. Peço para tirar uma foto de Antônio e sua família, juntos, antes de me despedir. Edineuza, murmura, em tom triste, meio de lado, mas com força suficiente para que eu a escute: “família grande essa…”.

Procurado pela agência Amazônia Real, o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) informou, por meio da assessoria de imprensa, que o promotor de Justiça de Alenquer, Diego Libardi, acompanha as denúncias da população da comunidade de Mediã referentes ao uso de agrotóxico pela empresa Açaí Amazonas e as morte das crianças, porém irá se pronunciar somente após o término das investigações, que correm em sigilo.

O Ministério Público Federal no Pará disse à Amazônia Real, por meio da assessoria de imprensa, que não existe investigação ou ação que cite a empresa Açaí Amazonas ou os empresários Márcio Vaccaro e Eloy Luiz Vaccaro em crimes relacionados ao uso irregular de agrotóxico, pesticida ou defensivo na comunidade Midiã, em Alenquer, no oeste do Pará. No entanto, o MPF informou à reportagem que há no órgão ao menos cinco processos que citam esses empresários e a empresa em danos ambientais. Leia mais abaixo desta reportagem o tópico Operação Madeira Limpa.

A Prefeitura de Alenquer foi procurada pela reportagem, mas não se pronunciou sobre as denúncias dos moradores da comunidade Mediã.

Quem é a empresa Açaí Amazonas?

Sede da fazenda Macupixi da empresa Açaí Amazonas na região de Alenquer, no Pará
(Foto: Fábio Zuker/Amazônia Real)

Em seu site na internet, a empresa Açaí Amazonas Indústria e Comércio Ltda. não economiza nos superlativos. Na página sobre a sustentabilidade na produção de açaí, diz que sabe “da importância da conservação dos recursos naturais para garantir a preservação do meio ambiente” e, por isso, “investimos constantemente em ações de reflorestamento, além de reavaliar nossos processos em busca de práticas mais sustentáveis”.

A empresa planta o açaí (uma palmeira que produz um fruto de cor roxa) irrigado em larga escala para confecção de bebidas e alimentos.

A Açaí Amazonas se orgulha de trabalhar com reflorestamento em áreas onde o açaí não é viável, no estímulo da criação de abelhas e utilização do caroço do açaí para geração de energia. A empresa goza de certificados verdes, como o USDA Organic, do Departamento de Agricultura dos Estados Unido, e o Br-Bio-141 Brasil, que respaldam no mercado internacional a sua produção de mais de 1.400 hectares de açaí irrigado, divididos em duas fazendas: Fazenda Mangal e Fazenda Macupixi.

Um dos proprietários da Açaí Amazonas é o empresário Márcio Vaccaro. A empresa, com sede em Óbidos, também no oeste do Pará, tem um capital social de R$ 42,2 milhões para a fabricação de conservas de frutas visando o mercado nacional e internacional.

Recorrente em dano ambiental

População denuncia poluição em rio por agrotóxicos da empresa Açaí Amazonas
(Fábio Zuker/Amazônia Real)

Operação Madeira Limpa, realizada em 2015, investigou o envolvimento de servidores públicos e de empresários do Grupo Vaccaro por acusação de danos ambientais em unidades de conservação (UCs), improbidade e redução de áreas territoriais do Projeto de Assentamento (PA) Cruzeirão para beneficiar a empresa Polpas do Baixo Amazonas Ltda, que após a operação mudou o nome para Açaí Amazonas. A empresa é recorrente em danos ambientais na Amazônia.

Foi comprovada, segundo o MPF, a extração ilegal de madeira na área da UC  (Unidade de Conservação) que fica na região de Óbidos. O processo no. 0003296-71.2015.4.01.3902 está aguardando julgamento na Justiça Federal. Mário e Eloy Vaccaro são réus do processo que apura danos contra a flora amazônica.

Na época foram emitidos mandados de prisões por acusação de recebimento de propina dos sócios do Grupo Vaccaro para servidores da Secretaria de Estado da Fazenda (Sefa) do Pará, Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) do Pará, Instituto de Meio Ambiente e Recursos Naturais e Renováveis (Ibama) e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), entre eles o superintendente Luiz Bacelar Guerreiro Júnior.

O MPF conseguiu, no âmbito do processo no. 0003296-71.2015.4.01.3902, o bloqueio de bens nos valores de R$ 2,8 milhões de Márcio Vaccaro, de seu pai Eloy Luiz Vaccaro, de um terceiro acusado e da empresa Polpas do Baixo Amazonas Ltda. Na ocasião, Eloy Vaccaro foi um dos presos pela Polícia Federal. O processo de crime contra a flora ainda tramita na Justiça Federal de Santarém, no oeste do Pará.

Em 2016, a empresa Açaí Amazonas, conforme o processo nº 0003058-18.2016.4.01.3902 do MPF, foi condenada a demolir um porto que funcionava sem licença e a reparar os danos ambientais no município de Óbitos (PA). O MPF interpôs recurso ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), em Brasília, com pedido para que o sócio Eloy Luiz Vaccaro também fosse condenado. O pedido no TRF-1 aguarda julgamento.

Silêncio sobre denúncias de Alenquer

A reportagem da Amazônia Real procurou a direção da empresa Açaí Amazonas, mas até o momento a indústria não respondeu por e-mail as dez perguntas enviadas sobre as denúncias dos moradores da comunidade Mediã e nem sobre as acusações quanto ao uso de agrotóxico nas lavouras da fazenda Macuxipi. As perguntas foram enviadas à responsável comercial, Natália Neres. Por telefone, uma funcionária da Açaí Amazonas, que não quis se identificar, disse à reportagem que a empresa utiliza métodos “um pouco mais modernos” para a produção de açaí.

A empresa Açaí Amazonas também não comenta os processos em que é acusada por danos ambientais e que tramitam na Justiça Federal do Pará.

Uma fala dura e crítica

A realidade para Antônio de Souza Sena e para as pessoas que vivem nas mais de 20 comunidades nos arredores da Fazenda Macupixi parecem um pouco descoladas dos vídeos promocionais da empresa Açaí Amazonas. Aldemara Ferreira é presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alenquer. Jovem e enérgica, possui uma fala dura e crítica com relação à atuação da empresa.

“Uma situação que nos preocupa é essa imagem que a empresa vende, de sustentável, que se dá bem com a comunidade. Isso não é verdade! O que acontece é a cooptação de algumas pessoas, de alguns comunitários que recebem algum tipo de benefício, para que possam falar bem, mas a grande maioria se sente muito prejudicada pela ação das empresas”, denuncia ela.

“Desde 2010 a gente veio nessa luta, contra os impactos da empresa”. A frase é de Manoel Israel Amorim Ribeiro, da comunidade Boqueirão, no Quilombo do Palcoval. “Defendemos o Igarapé do Canacupá, que foi barrado pela empresa com uma barragem, que gerou impacto muito grande com a mortandade de peixes, porque eles taparam o igarapé que dava acesso a cinco lagos na região. Por isso nos reunimos e começamos a luta para retirar a barragem”, diz ele.

A dinâmica hídrica da região é complexa e Manoel Israel Ribeiro é paciente em me explicar. Quando é época de cheia, no inverno, a água da chuva faz o rio abastecer os lagos. Junto com a água vem os peixes, que se direcionam ao lago para desovar. Conforme vai terminando o inverno e se aproxima o verão, a água vai descendo dos lagos para o rio, via o Igarapé do Canacupá. São cinco lagos abastecidos pelo igarapé: Lago do Marajá, do Ingá, do Mafurá, do Canacupá e do Macupixi. Na época de cheia mais intensa, eles se tornam um lago só.

A barragem é necessária à empresa, dizem os moradores, pela captação de água que a irrigação dos mega-açaizais demanda. O volume de água necessário aumenta no verão, época de seca na Amazônia, entre os meses de setembro e novembro. Israel resume sua insatisfação com a construção da barragem: “os peixes estavam presos, e a água apodreceu totalmente”.

Em outubro de 2010, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alenquer, representando as comunidades afetadas pela barragem do lago do Canacupá, solicitou a intervenção do Ministério Público Estadual do Pará. A peleja durou anos. Percebendo a demora, os comunitários romperam a barragem, abrindo “um pequeno canal para passagem de água e peixes”, como relata Aldemara Ferreira.

Apenas em janeiro de 2012, segundo consta em memorando de reunião na Câmara Municipal de Alenquer, foi firmado um acordo entre sindicato, representantes dos comunitários e da empresa. No documento, a Açaí Amazonas concorda com a retirada total da barragem. Segundo Aldemara, a retirada só ocorreu em janeiro de 2013. Foram cerca de três anos vendo rio e peixes apodrecendo.

Apesar dos danos, os projetos seguem. A Açaí Amazonas instalou no lago do Macupixi o que Israel chama de “uma bomba muito potente, que puxa até peixe e camarão”. No verão, com a seca, o lago torna-se só uma poça. Parte do capim que dava sustento aos peixes, na beira do lago, também foi cortada para a instalação da bomba.

“Os animais, as pacas e antas que viviam lá tiveram que se retirar. Até uma cobra grande se sentiu afetada pela sequidão, andou, de um canto pra outro, procurando lugar para se esconder. A gente viu os rastros dela”, conta Manoel Israel. Ele propôs um sem número de vezes que a empresa cavasse poços em seu terreno para abastecer os açaizais, e não consegue explicar porque eles insistem em captar água dos rios e lagos.

“Agora o projeto deles, é de colocar uma bomba no Rio Curuá. No verão, ele praticamente fica só praia, ele seca, fica um filetinho de rio, um canalzinho. Ele não vai resistir, que o verão é a época que eles mais puxam água. Vinte e quatro horas por dia. Quem não tem conhecimento do rio, pensa que não vai gerar um impacto. Mas nós que somos moradores fixos de lá, que nos criamos na beira do rio, tem época que você, ó!  atravessa a pé, só molhando o pezinho. Onde eles escolheram pra colocar, é uma área mais funda um pouco. Mas aí vai sugar e apartar o rio”, relata Israel, misturando temor e profecia.

Antônio ressente muito a forma de chegada e atuação da empresa. “Saíram acabando meio mundo, enganando o povo. Traziam médico, dentista, doação de camisas para os meninos, para conseguirem a energia da comunidade. Aí quando chegou a energia deles, ficou só para eles. E deixaram para nós só veneno e barragem”, protesta.

Racionalização do açaí

Antônio Sena segurando peixe apodrecido no Lago do Macupixi
(Foto: Fábio Zuker/Amazônia Real)

Raoni Azerêdo é professor do curso de Administração do Campus da Universidade Federal do Pará (Ufopa) no município de Alenquer. Suas pesquisas estão centradas na expansão da soja no Brasil, em especial no cerrado, na região conhecida como Matopiba, que ocupa territórios dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Um dos seus campos de interesse é questionar os impactos deste modelo de desenvolvimento e pensar que forma de produção pode se desenvolver, gerando renda para as famílias e mantendo a floresta em pé. Ou seja, inserindo agricultores na cadeia produtiva sem a destituição de suas terras, sem a destruição da floresta e das formas tradicionais de plantio.

“Desde o início dos anos 2000, a empresa vinha estudando formas de racionalizar o plantio de açaí. Para mim, tem uma questão de fundo, que é como que o açaí, que até então era um produto tipicamente dos agricultores familiares e povos tradicionais, aqueles que o cultivam nas beiras dos igarapés, passa a ter uma produção verticalizada. Assim como foi com a Ford na época da borracha, que racionalizou o plantio da borracha em Fordlândia e Belterra, no Pará, temos agora um processo de racionalizar o plantio do Açaí”, reflete Raoni, referindo-se ao empreendimento de Henry Ford.

O industrial norte-americano tentou, entre o final da década de 1920 e meados da década de 1940, impulsionar um novo boom da borracha na Amazônia. A empreitada, realizada entre os municípios de Belterra e Fordlândia, promoveu um plantio monocultural de seringueiras e foi um fracasso: em parte devido à imposição de um ritmo de trabalho excessivamente rígido aos trabalhadores locais, em parte decorrente da proliferação de fungos que destruíram as plantações.

Raoni prossegue em sua explicação: “no site vemos três certificados com auditorias especializadas. Esses selos tem um apelo fundamentalmente da segurança alimentar e das práticas sustentáveis. Eles garantem um nicho do mercado e a rastreabilidade do produto. O consumidor lá fora, seja em São Paulo, ou nos Estados Unidos, onde a empresa detém grande fatia do seu mercado, identificam esse produto como sustentável do ponto de vista ambiental e de práticas socialmente respeitáveis”.

O professor elenca os impactos causados por este processo de racionalização da produção. Além do uso de agroquímicos e da diminuição das formas de pesca, Raoni Azerêdo identifica a questão da terra como problema principal do litígio entre comunitários e a empresa. Ele chama atenção para “a fórmula como a empresa chegou no município, e adquiriu a posse das áreas hoje destinadas ao açaí”.

“Há relatos de preço abaixo do praticado pelo mercado de terra mas também de sedução e cooptação de lideranças. Há relatos comunitários de expropriação: muitas vezes o proprietário vende a sua terra, e vai para a cidade, onde o dinheiro acaba e fica a mercê também da marginalidade e precariedade”, afirma.

Segundo Raoni, houve outro caso recente de violência. Três comunitários se dirigiam ao lago do Macupixi para pescaria quando “seguranças armados impediram os agricultores de acessarem este lago. Com muita truculência. Isso colocou novamente as comunidades em audiência para discutir a atuação da empresa”.

A questão da terra

Fazenda Macupixi, da Açaí Amazonas, em Alenquer (Foto: Fábio Zuker/Amazônia Real)

Josielson Santos da Costa trabalhou na Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Óbidos por mais de uma década, acompanhando conflitos por terra e situações de violência. Entre os casos que acompanhou está o da chegada da empresa Açaí Amazonas na região.

Ele é taxativo: “houve uma redução do Programa de Assentamento (PA) Cruzeirão no Município de Óbidos, em torno de 17 mil hectares, mais ou menos isso. Então quem poderiam desafetar? Apenas o superintendente do Incra. Então, na época, o Bacelar Guerreiro, que era superintendente do Incra, desafetou a área de reserva legal do PA Cruzeirão para favorecer a empresa Açaí Amazonas. Então como a Polpas tem uma madeireira, eles fizeram o plano de manejo e raparam tudo o que eles puderam dentro do período”.

Costa diz que o processo inclui, primeiramente, a retirada da madeira, para em seguida vir a plantação do açaí. Criado em 1997, o PA Cruzeirão foi o primeiro Programa de Assentamento do Município de Óbidos. A chegada da empresa na região data de 2002, afetando majoritariamente a área norte, na nascente do rio Mamiá, onde se instalou uma base da empresa, chamada São Domingos “desmataram mais de 200 hectares de floresta nativa”, afirma Costa. (Leia aqui o processo referente ao Cruzeirão)

“Eles são uma família, encabeçada pelo Eloy Luiza Vaccaro, que foi preso na operação Madeira Limpa, e tem os outros amigos dele lá. Eles tem uma madeireira própria. Eles fazem supressão vegetal. Eles fazem plano de manejo. Quando retiram a madeira, eles preparam esse solo para continuar plantando açaí. Então, tão lá, estão produzindo, da forma como eles vem. O que nós como populações da Amazônia estamos percebendo é a quantidade do uso de agrotóxico. Isso está mudando bastante a nossa realidade. Não só das comunidades, mas também do lago do Macupixi, que é o mais impactado pelo veneno que eles utilizam”, afirma Josielson Santos da Costa.

Pergunto a Josielson se ele acredita que o Grupo Vaccaro pretenderá comercializar no futuro a madeira de Mogno que dizem ser área de reflorestamento. “Com certeza, já plantaram muito, e vão negociar isso no futuro”, responde Costa.

Josielson Santos da Costa lembra que após a entrada em Óbidos, a empresa foi para a região do Lago do Macupixi, no município vizinho de Alenquer. Foi aí que ela mudou o nome para Açaí Amazonas.

“O Macupixi era uma comunidade consolidada. Comunidade de trabalhadores rurais. Lá havia 57 famílias. E como os ‘gaúchos’ começaram a comprar essas áreas mais próximas à estrada, a PA que liga Alenquer a Óbidos, eles precisavam de água. Como o lago do Macupixi é estratégico para a empresa, então eles começaram a comprar lotes desta comunidade Macupixi, a ponto de comprarem todas as 57 posses. Então que eles formaram aquele grande empreendimento onde está a base da empresa”. “Gaúcho”, nessa região da Amazônia, é como são genericamente chamados os produtores vindos da região Sul do país.

Pergunto a Josielson sobre a situação jurídica da área ocupada, onde vive Antônio e mais uma dezena de famílias. A área é reivindicada pela empresa. Ele responde que o suposto proprietário negociou a área com a Açaí Amazonas, mas a forma como se deu a negociação nunca foi clara.

“Como agora o lago sofreu essa pressão do uso do agrotóxico, o que aconteceu, quem ocupou aquela região ali são ex-pescadores. Então, naquela região do Macupixi são em torno de 17 comunidade; tinha uma grande quantidade de pescadores. E agora, com esse uso dos agrotóxicos, eles estão buscando uma nova forma de vida, que é a agricultura. A ação que o Grupo Vaccaro moveu contra os trabalhadores caiu por terra porque eles não mostraram a legitimidade da posse. Ou seja, dá para perceber que tem um ‘grilo’. Que sempre esse grilo tem um nome, um intermediário, mas que está blindado de alguma forma. A prova é que os trabalhadores estão lá, a decisão do juiz foi favorável a eles. E eles estão lá produzindo, plantando, tentando conviver com a empresa sendo vizinha”, conta ele.

Conversei com Marcos Nadalon, advogado que representa os moradores de Mediã que, como Antônio, vivem na ocupação em área reivindicada pela empresa. Segundo ele, a área de 980 hectares a Açaí Amazonas alegava se tratar sobre área de proteção. Porém, entraram na ação como sendo áreas pertencentes a dois ‘laranjas’, que supostamente teriam arrendado essa área para uma parcela de plantio de açaí.

“Não possuíam nem recibo de compra e venda, alegando que tinham perdido.  Estamos aguardando sentença, mas estamos com liminar favorável e parecer do promotor para ficarmos na área”, diz o advogado.

Aplicação de veneno?

Empresa Açaí Amazonas usa trator para aplicar agrotóxicos nas lavouras
(Foto: Fábio Zuker/Amazônia Real)

Dois homens trajando roupas brancas de isolamento e máscaras amarelas com filtros caminham com mangueiras ligadas a um recipiente na parte traseira de um trator amarelo – dirigido por outro homem igualmente protegido. Borrifam um produto no solo ao redor das palmeiras de açaí. O vento trouxe o cheiro forte imediatamente para nossos rostos. Apesar de eu estar de óculos escuros, a primeira sensação é de ardência nos olhos. Alguns momentos depois fica difícil de respirar, e uma náusea toma conta; espécie de enjoo, queimação e sensação de “estômago fechado”. Fiquei assim por cerca de duas horas, tendo apenas parado alguns segundos para fotografar a aplicação do veneno. Esbocei perguntar aos funcionários o que era a substância que aplicavam, mas ao tentar descer da moto e tomar ar para realizar a pergunta, percebi que respirava com dificuldade. Voltei para a moto e falei para meu condutor sairmos logo dali.

Cerca de 400 metros do local da aplicação da substância tem uma escola. Poucos momentos antes de presenciar esta cena estive nela, onde cerca de 20 crianças merendavam e brincavam no pátio da escola. As professoras se recusaram a me dar uma entrevista. Seguramente as crianças receberam quantidades desta mesma aplicação que eu presenciara de perto.

Cheguei à casa de Claudecir Silva dos Santos e Azenate Oliveira Moreno, que vivem não longe da área de aplicação dos supostos agrotóxicos.

Claudecir refletiu: “o nosso açaí, a gente cava o buraco e coloca. Não tem veneno nem nada. No verão, só uma irrigadinha e dá, né? Tudo por conta da natureza”. Pergunto quantos pés são plantados: “a gente planta pouco, na base de 30, 40 pés”.

Claudecir Silva dos Santos com sua família na comunidade em Alenquer
(Foto: Fábio Zuker/Amazônia Real)

A bomba no Lago do Macupixi

O Lago Macupixi (Foto: Fábio Zuker/Amazônia Real)

Seguimos a jornada de moto rumo ao Lago no Macupixi. No caminho, recolhemos Antônio Souza Sena. Avistamos uma das áreas da empresa destinadas ao que em seu site é considerado reflorestamento. Trata-se de uma enorme plantação de monocultura de mogno. São 2.450,58 hectares, segundo cadastro no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em nome da Empresa Exata Manejo Florestal Ltda, de propriedade do grupo Vaccaro.

Outra fazenda em nome da empresa Exata Manejo Florestal conta com 3.674,02 hectares. Juntas, compõem mais dos 6 mil, dos 34 mil hectares que o detém o Grupo Vaccaro apenas no município de Alenquer (que possui uma área de 22.282km2). A principal atividade da empresa Exata é a “extração de madeira em florestas nativas”, conforme os dados cadastrais obtidos junto ao CNPJ da empresa.

Existem diferentes tipos de Mogno Africano. Embora nem todas tenham se adaptado ao clima brasileiro, todas as espécies de mogno que de fato se adaptaram às condições brasileiras são consideradas madeiras nobres ou de lei, com alta lucratividade no mercado.

Hoje, os pés de mogno ainda estão pequenos. Ou melhor, finos, embora já tenham atingido certa altura. Claudecir, Antônio e outros comunitários acreditam que assim que as árvores crescerem, a empresa solicitará a sua derrubada para comercializá-las. Ao que tudo indica, ali, pelo menos, a Açaí Amazonas e suas empresas associadas deixaram de jogar veneno, após constantes reclamações dos moradores. Claudecir conta que “quando vinha, chegava a varar tudo branco… nuvem de veneno”.

Fizemos uma breve parada no rio Curuá. Antônio olha ao redor. Suspira. Paramos em uma curva, repleta de mata por todos os lados. É o local onde a empresa Açaí Amazonas quer instalar a bomba, afirma ele. Antônio comenta que o nível do rio também está mais baixo do que o que costumava ficar,  por conta da bomba no Macupixi. Nesta época do ano, começo da seca, o lago abastece o rio.

Já nas comunidades que vivem à beira do lago do Macupixi a mata é muito mais fechada, densa. Apesar das áreas descampadas, a presença em grande número de castanheiras e sua altura impressiona. “Pois… a área da empresa era assim, cheia de castanheiras”, complementa Maria Sousa de Araújo, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alenquer.

Plantação de açaí na fazenda Macupixi (Foto: Fábio Zuker/Amazônia Real)

Um dos moradores do local, Marclende dos Santos Caripuna, que nos acompanha pelas margens do lago, não hesita: “a gente não pode, já os grandes…ali do outro lado, onde está a bomba, já estão todas mortas, e aqui, já deixaram marcados os paus que têm mais de 80 cm, pra derrubar e passar os canos d’água”.

Antônio e Claudecir explicaram que o lago estava mais seco do que o que deveria estar para essa época do ano. Além disso, como toda a água com agrotóxicos que vem das plantações cai no lago, e no verão o lago tem menos água – e menos ainda após a instalação da bomba – o nível de contaminação aumenta: “faz muito dano. Aí que fica envenenado mesmo, porque tem pouca água”, afirma Antônio.

Antônio e eu esperamos Marclende e Claudecir virem com as canoas para nos aproximarmos da bomba instalada no lago. Antônio, enquanto isso, relatava a diferença do lago que conheceu quando jovem para o atual, o receio do contato com a água e a mortandade de peixes: “quando fica seco, a gente nem arrisca comer peixe desse lago”. Não demorou muito para os dois voltarem com as canoas, e um peixe nas mãos. Uma Cujuba morta. “Não presta. A carne está puba… podre. Tipo moída”, disse Antônio.

O professor Raoni Azerêdo termina a sua entrevista em tom propositivo. Ele parece apostar em um outro caminho para a região. Vislumbra alternativas e possui uma fala entusiasmada e pragmática: “existem outros horizontes de desenvolvimento, que é o fortalecimento da agricultura familiar. Um exemplo é o Programa Nacional de Alimentação Escolar. Vinte assentados quilombolas, no Projeto de Desenvolvimento Sustentável Paraíso, acessaram contratos com a Prefeitura Municipal de Alenquer no valor de 200 mil reais para com seus produtos abastecem as escolas”.

Como membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Josielson Santos da Costa é um homem acostumado a ver situações violentas. Não é incomum o Pará aparecer como o Estado onde mais são assassinados trabalhadores e trabalhadoras rurais sem-terra, junto com indígenas, quilombolas, posseiros, pescadores e assentados, nos levantamentos anuais feitos pela  CPT.

“O que existe ali é uma disputa de terra, e uma das formas de expulsar essas pessoas é utilizando veneno. Essa é a realidade. Por prova que o gerente da empresa falou: se vocês não saírem por bem, vocês vão sair por mal. Em menos de duas semanas, morreram as duas crianças, que estavam tomando banho no igarapé”, afirma Josielson Costa

“Eu não consigo ter a clareza, a força e a síntese da fala de Antônio: ‘o que eles querem mesmo é matar a gente’”, declara.