Se Joseph Biden não tivesse obtido pequenas margens na Geórgia e no Arizona, talvez a democracia brasileira como a conhecemos desde 1985 talvez não existisse mais. Reportagem do jornal britânico Financial Times mostra como os esforços de Biden e do alto comando das Forças Armadas dos EUA ajudaram a impedir um golpe de Jair Bolsonaro.
“Enquanto o Brasil se preparava para a eleição realizada em outubro de 2022, muitos governos ao redor do mundo viram a votação com um crescente sentimento de mau presságio”, escreve o repórter Bryan Harris. Segundo ele, Bolsonaro flertou com a subversão da democracia, mas Lula venceu e Bolsonaro esperneou pouco e aceitou o resultado das urnas.
Isso foi também resultado de uma pressão silenciosa de um ano do governo dos EUA para instar os líderes políticos e militares do país a respeitar e salvaguardar a democracia. “Washington foi neutro no resultado da eleição, mas não toleraria qualquer tentativa de questionar o processo de votação ou o resultado do pleito”, diz Harris.
O Financial Times conversou com seis funcionários dos EUA envolvidos nesse esforço, bem como com várias figuras institucionais brasileiras importantes, para reunir a história de como o governo Biden se envolveu no que um ex-alto funcionário do departamento de Estado chama de “campanha de mensagens muito incomum” nos meses que antecederam a votação, usando canais públicos e privados.
Todos sublinham que a maior parte do crédito por salvar a democracia do Brasil diante do ataque de Bolsonaro pertence aos próprios brasileiros e às suas instituições. “Foram as instituições brasileiras que realmente garantiram que as eleições ocorressem”, diz um alto funcionário do governo dos EUA. “O importante é que transmitimos as mensagens certas e mantivemos a disciplina política.”
A administração Biden também tinha uma motivação mais direta. Após a insurreição de 6 de janeiro por apoiadores de Trump, no Capitólio em Washington, tentando anular os resultados da eleição de 2020, Biden se sentiu firme para peitar qualquer tentativa de Bolsonaro de questionar o resultado das eleições, dizem autoridades dos EUA.
Os EUA são acusados de interferir na política brasileira; em 1964, Washington apoiou um golpe militar no Brasil para derrubar João Goulart, iniciando uma ditadura de 21 anos. O governo Biden teve que encontrar uma maneira de transmitir sua mensagem sem que os EUA se tornassem um ator político em uma eleição ferozmente disputada.
Uma campanha coordenada, mas não anunciada, em vários ramos do governo dos EUA, incluindo militares, CIA, Departamento de Estado, Pentágono e Casa Branca foi a solução. “Foi um compromisso muito incomum”, diz Michael McKinley, ex-alto funcionário do departamento de estado e ex-embaixador no Brasil.
De acordo com o ex-alto funcionário do departamento de estado Tom Shannon, tudo começou com a visita do conselheiro de segurança nacional do presidente Joe Biden, Jake Sullivan, ao Brasil em agosto de 2021. Um comunicado da embaixada disse que a visita “reafirmou a relação estratégica de longa data entre os Estados Unidos e o Brasil. ” mas Sullivan deixou sua reunião com Bolsonaro preocupado, segundo Shannon.
“Bolsonaro continuou falando sobre fraude nas eleições americanas e entendendo sua relação com os EUA em termos de sua relação com Trump”, diz Shannon, ex-embaixador dos EUA no Brasil. “Sullivan deixou o Brasil pensando que Bolsonaro seria capaz de tentar manipular os resultados das eleições ou negá-los como Trump havia feito. Pensou-se muito em como os EUA poderiam apoiar a eleição brasileira sem interferir no processo”.
Quando a campanha começou, o Brasil era um barril de pólvora dividido entre Bolsonaro e Lula. Os riscos para a democracia brasileira eram claros em um país com histórico de ditadura militar – “Bolsonaro havia celebrado o regime que governou o Brasil de 1964 a 1985 e, em seu primeiro mandato, encheu as Forças Armadas de elogios, cargos e dinheiro”, continua Harris.
Shannon relembra uma visita de Hamilton Mourão a Nova York para um almoço com investidores em julho de 2022. Depois de responder às perguntas sobre os riscos de um golpe, Mourão disse que as Forças Armadas do Brasil estavam comprometidas com a democracia. Na saída, Shannon se juntou a ele. “Você sabe que sua visita aqui é muito importante. Você ouviu a preocupação das pessoas sobre o risco de um golpe e também estou preocupado. Mourão me respondeu: ‘Eu também estou muito preocupado’”, disse Shannon ao FT.
Também em julho de 2022, Bolsonaro lançou sua candidatura à reeleição. “O exército”, disse ele, “está do nosso lado”. Poucos dias antes, Bolsonaro redobrou esforços para lançar dúvidas sobre o processo eleitoral. Ele convocou cerca de 70 embaixadores para uma reunião em Brasília e fez uma apresentação questionando a confiabilidade do sistema de votação eletrônica do Brasil. Isso provocou um alerta em Washington.
No dia seguinte, o Departamento de Estado emitiu um endosso incomum ao sistema de votação, dizendo que “o sistema eleitoral capaz e testado pelo tempo e as instituições democráticas do Brasil servem de modelo para o mundo todo”. “A declaração dos EUA foi muito importante, principalmente para os militares”, diz um alto funcionário brasileiro. “Eles recebem equipamentos dos EUA e fazem treinamento lá, então ter um bom relacionamento com os EUA é muito importante para os militares brasileiros”.
Já o secretário de Defesa, Lloyd Austin, deu um recado claro aos militares brasileiros numa reunião de ministros da Defesa do continente: “Em particular, Austin e outros oficiais explicaram aos brasileiros as consequências de apoiar qualquer ação inconstitucional, como um golpe. Haveria ramificações negativas significativas para o relacionamento bilateral, segundo um funcionário do governo dos EUA”, continua Harris.
Um reforço adicional à mensagem para o Brasil veio da general Laura Richardson, chefe do Comando Sul dos EUA, durante visitas em setembro passado e novembro de 2021. O chefe da CIA, William Burns, também veio e disse ao governo Bolsonaro para não mexer com as eleições. “O secretário de defesa, o chefe da CIA, o conselheiro de segurança nacional, todos visitados em ano eleitoral. Isso é normal? Não, não é.”, diz Michael McKinley, ex-embaixador no Brasil.
Um alto funcionário brasileiro diz que o ministro da Marinha de Bolsonaro, almirante Almir Garnier, era o mais “difícil” dos chefes militares. “Ele foi realmente tentado por uma ação mais radical”, diz o funcionário. “Então tivemos que fazer todo um trabalho de dissuasão, o departamento de estado e o comando militar dos EUA disseram que iriam romper os acordos [militares] com o Brasil”.
Os EUA também forneceram ajuda prática ao processo eleitoral, mitigando dificuldades da cadeia de componentes, especialmente semicondutores, necessários para a fabricação de novas máquinas. O ex-embaixador dos EUA no Brasil, Anthony Harrington, conseguiu alavancar conexões dentro da fabricante de chips Texas Instruments para, segundo ele, “suprir a demanda de semicondutores e priorizar o impacto nas eleições democráticas”. Isso também contou com ajuda de empresas de Taiwan.
30 de outubro, Luiz Inácio Lula da Silva vence o segundo turno por apenas 2%. Luís Roberto Barroso, juiz do STF, então presidente do TSE, diz que também participou da solicitação da declaração do Departamento de Estado dos EUA. “Perguntei a [Douglas Koneff, então embaixador interino dos EUA] algumas vezes por declarações sobre a credibilidade do nosso sistema de votação, lembra Barroso. “Ele conseguiu que o Departamento de Estado fizesse uma declaração de apoio à democracia no Brasil”.
À medida que a eleição se aproximava, altos funcionários dos EUA acreditavam que Bolsonaro também precisava ouvir mais vozes dentro de seu próprio círculo. Muitos exortavam Bolsonaro a respeitar o resultado. Arthur Lira, presidente da Câmara, o vice-presidente Mourão, Tarcísio Freitas, ministro da Infraestrutura, e o almirante Flávio Rocha, secretário de assuntos estratégicos da presidência, foram todos condutores de mensagens dos EUA sobre a necessidade de proteger a integridade das eleições.
Vários aliados de Bolsonaro, incluindo Freitas e Lira, reconheceram rapidamente a vitória de Lula. “Em 24 horas, eles aceitaram os resultados do segundo turno”, diz McKinley. Chocado com o resultado, Bolsonaro desapareceu do olhar público, mas relutantemente ordenou que as autoridades cooperassem com a transferência de poder.
Com a aproximação da posse de Lula em 1º de janeiro, as tensões continuaram. Em 12 de dezembro, manifestantes pró-Bolsonaro atacaram policiais e incendiaram veículos em Brasília. Uma semana depois, o ex-capitão do exército participou de um jantar com alguns membros mais moderados de seu círculo íntimo, disse um dos presentes.
Quando Bolsonaro deixou o Brasil e foi para a Flórida, dois dias antes de Lula tomar posse, os americanos, junto com muitos brasileiros, deram um suspiro de alívio. Mas o perigo não havia passado. Em 8 de janeiro, apoiadores de Bolsonaro invadiram o Congresso, o STF, e o Palácio do Planalto exigindo intervenção militar. Os militares do Brasil intervieram em poucas horas – mas para reprimir os protestos. Mais de 1.000 manifestantes foram presos.
Meses depois, a PF encontrou documentos em posse do ministro da Justiça de Bolsonaro, Anderson Torres, e de um de seus assessores mais próximos, o tenente-coronel Mauro Cid, com medidas para anular o resultado da eleição. Torres, que passou cinco meses na prisão este ano enquanto aguarda julgamento, diz que o documento encontrado em sua casa foi “vazado fora de contexto” e “sem validade legal”.
Os EUA decidiram dar um último empurrão a favor do respeito à eleição. O presidente Biden estava no México na época da insurreição para uma cúpula de líderes do Nafta e viu o que estava acontecendo no noticiário. “Ele pediu na hora para falar com o Lula”, diz um alto funcionário do governo. “Após a ligação, ele propôs ao primeiro-ministro canadense Justin Trudeau e ao presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador que emitissemos uma declaração conjunta trilateral de apoio a Lula e ao Brasil”, diz Harris no texto.