Movimento cristão quer combater os “lobos em pele de cordeiro” da bancada evangélica. Por Clara Assunção

Atualizado em 5 de julho de 2020 às 10:08
Evangélicos. Foto: Reprodução

Publicado originalmente no site da Rede Brasil Atual (RBA)

POR CLARA ASSUNÇÃO

Na bíblia há uma parábola que adverte sobre o “cuidado com os falsos profetas“. É Jesus, no Sermão da Montanha, avisando que “eles virão vestidos de peles de ovelhas, mas por dentro serão lobos devoradores. Vocês os reconhecerão por seus frutos”, previne. É essa também a parábola que o estudante de Filosofia e Teologia Samuel Oliveira se recorda para explicar o quadro político atual, que levou ao poder um homem que diz “Deus acima de todos”, mas para “pregar injustiças e maldades” – com o apoio inclusive de uma dita bancada evangélica no Congresso. “É exatamente o que a gente vê no governo Bolsonaro”, compara.

Autodeclarado cristão evangélico e militante do PCdoB, Oliveira vê de perto as fronteiras, que permitem a laicidade do Estado, ficarem turvas. Há cultos, cruzes e imagens de Cristo nos chamados espaços institucionais de poder. Sua religião dá nome a uma das maiores bancadas no Congresso Nacional. Mas nem por isso o estudante se sente representado. E, ao que parece, não divide esse incômodo sozinho.

Oliveira integra a equipe de coordenação de fundadores que, neste domingo (5), às 18h, lançam virtualmente um novo movimento para congregar “irmãos e irmãs da fé”: a Bancada Evangélica Popular. A transmissão do lançamento ocorrerá na página do Facebook. A proposta é divulgar uma nova perspectiva de participação dos evangélicos na política, mais focada nos ideários da esquerda e com partidos progressistas.

Bancada evangélica estereotipada

“Hoje nós temos os evangélicos no imaginário como um grupo único, homogêneo, fundamentalista, tradicional, conservador. E que tem, nos últimos anos, criado uma participação e vínculo muito intenso com a política, elegendo suas bancadas evangélicas, em todas as instâncias e criando esse estereótipo. O que a gente quer é poder apresentar para a sociedade uma outra perspectiva de ser evangélico”, explica.

Em contraponto à bancada tradicional, a popular terá de disputar os eleitores evangélicos quase que no mesmo tom do versículo de João que o presidente tanto gosta de citar. “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.” Espaço para isso tem. O Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) conta 85 representantes, nas 513 cadeiras na Câmara dos Deputados e 81 do Senado, declarados evangélicos. Até abril do ano passado, a chamada Frente Parlamentar Evangélica contava, ao todo, 195 parlamentares.

Em paralelo, uma pesquisa de janeiro de 2020, do Instituto Datafolha, estima que, hoje, 31% da população é evangélica. No país de maioria católica, o dado chama atenção para um crescimento exponencial desse segmento religioso, que pode ser o maior entre os brasileiros já em 2022. Até 1980, 7,8 milhões de pessoas se declararam evangélicas. Em 2010, essa população já era formada por 42,3 milhões. Um aumento de 22,2%, segundo o IBGE.

Evangélicos e de esquerda

Um dos coordenadores nacionais da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito e, que também compõe a equipe de fundadores da Bancada Popular, o pastor Ariovaldo Ramos há anos reflete sobre a importância da esquerda olhar para os evangélicos como um movimento de base, principalmente nas periferias. Oliveira ressalta, no entanto, que diferente da lógica da bancada tradicional, o movimento busca uma representação, mas compreendendo que o Estado é laico.

“O que a gente quer é estar lá enquanto representante do nosso setor evangélico para fazer o contraponto com o setor atual, que está lá e que não representa verdadeiramente os nossos valores. E a gente quer construir isso inclusive com o processo de laicidade. Porque o que eles fazem hoje é tentar tornar o Estado brasileiro em um Estado cristão. E a gente quer estar lá para deixar claro que isso não deve acontecer. Esse não é um projeto da parte de Deus, esse é um projeto egoísta da parte dessas pessoas“, destaca.

Mais próxima dos partidos da direita e extrema-direita, além de apoiadores do governo Bolsonaro, a bancada evangélica tradicional parece ler mesmo a bíblia dos neoliberais. Essa é a principal crítica do movimento que, no manifesto que será divulgado também neste domingo, expõe diversos sintomas dessa linha econômica.

Mulheres e LGBTs

“Se é verdade que o setor evangélico cresceu tanto no Brasil, devemos lembrar também que cresceram os números de outros fatores como a desigualdade, miséria, injustiça, violência, mortes e as opressões em suas variadas formas. Isso deveria ser motivo de preocupação e até constrangimento. Não ajudamos nem na desaceleração do crescimento desses números e quiçá, se não colaboramos, de alguma forma, para o aumento de todas essas injustiças. Não foi para isso que Cristo nos chamou”, destaca um trecho do documento.

Ser de esquerda, é para a Bancada Evangélica Popular, estar mais próximo dos ideários sacralizados na Bíblia. “O evangelho precisa estar conectado, necessariamente, com a justiça social. Se a gente tem uma sociedade cheia de desigualdades, nós temos que nos movimentar e nos organizar contra isso”, comenta o militante.

Oliveira diz que esse é um dos principais consenso no movimento pluripartidário e de diversas linhas teológicas. Ainda assim, segundo ele, também cabe unanimidade na bancada popular quanto à defesa de pautas sobre os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, o debate sobre drogas e o direito de ser da população LGBTI+. Questões essas que hoje sofrem com a resistência de forças conservadoras.

“Nosso consenso é que cada um tem a sua liberdade cidadã, a sua liberdade social de viver, as suas expressões das variadas formas e que não tem que ser uma luta da igreja o cerceamento da liberdade das pessoas em detrimento da fé individual ou coletiva de qualquer pessoa. Não pode se criar e instrumentalizar a igreja, de modo algum, para a opressão e perseguição dessas categorias e minorias”, garante o estudante.

De olho nas eleições 

Além do pastor Ariovaldo Ramos, outros nomes da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito – movimento social, criado em 2016, em resistência ao golpe sobre a presidenta Dilma Rousseff – integram a Bancada Popular. A fundadora do grupo Evangélicas pela Igualdade de Gênero, Valéria Vilhena, é um dos nomes à frente da aliança.

Diferente desses movimentos, a bancada já sai de olho para pleitear a participação na política institucional. Samuel Oliveira é um proponentes que vai à disputa nas eleições municipais deste ano. Assim como o também integrante João Paulo Berlofa, que é pré-candidato pelo Psol, entre outros membros de siglas progressistas. “No nosso entendimento, nós temos que ocupar esses espaços de decisão para poder deixar claro a nossa posição, fazer o nosso contraponto, e lutar e defender aquilo que a gente acredita para a nossa sociedade”, defende Oliveira.

Ser Mateus 

Assim a Bancada Evangélica Popular espera “crescer em qualidade representativa”. E lembrar que se Deus existe, ele ensinou em Mateus a dar comida e o que beber a quem tem fome e sede. E um lar, a quem precisa de casa.

“Hoje a bancada evangélica está posta na sociedade, nas Câmaras e tudo mais, com um objeto de estratégia de poder das igrejas. Está muito atrelada e vendida ao sistema financeiro, ao setor mais liberal da economia e por isso faz a defesa do governo Bolsonaro que é um governo que contraria, para não errar 99%, mas acho que é 100%, daquilo que a gente acredita e defende para a sociedade e a vida humana”.

“O governo Bolsonaro hoje tem deixado cada vez mais claro que não tem nenhum respeito e valor à vida das pessoas”, acrescenta Samuel Oliveira.