PUBLICADO NO BRASIL DE FATO
POR EMILLY DULCE
Cerca de 60% da população indígena brasileira vive em suas aldeias em uma relação de dependência e proteção dos recursos ambientais. Como guardiões da floresta, os nativos garantem a preservação da biodiversidade por meio de reflorestamentos e agroecologia, por exemplo. No Brasil, existem em torno de 305 etnias indígenas, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010.
Alvos de constantes violências, os povos originários batalham pela demarcação de suas terras, pela garantia de direitos básicos e pela preservação de tradições que têm na terra uma dimensão sagrada.
“Tudo que acontecer à terra acontecerá aos filhos da terra”, disse o cacique Seattle na “Carta da Terra”. O texto, que chegou a ser distribuído pela Organização das Nações Unidas (ONU), é considerado um dos pronunciamentos mais comoventes na defesa do meio ambiente.
Escrita no século 19, a carta permanece atual, na avaliação do antropólogo Benedito Prezia, um dos autores do livro “Povos Indígenas – terra, culturas e lutas”, publicado este mês pela Editora Expressão Popular. Há 10 anos, Prezia coordena o Pindorama (terra das palmeiras, em tupi-guarani), programa de inclusão de indígenas no ensino superior da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Além de contribuir no estudo da temática indígena, a obra tem a finalidade de formar aliados da causa, especialmente após os retrocessos na política indigenista promovidos pelo governo de Jair Bolsonaro (PSL), salienta Prezia. Para a Amazônia, por exemplo, a solução defendida pelo presidente é a exploração do território em “parceria” com os Estados Unidos, colocando ainda mais em risco a sobrevivência de comunidades tradicionais.
“O primeiro ponto e desafio é essa questão da natureza. A gente sempre fala que os indígenas são os guardiões da natureza. Em torno de 12% do território nacional é terra indígena. Se fosse 30%, com certeza o nosso território estaria muito mais protegido e resguardado”.
Ao contrário, os territórios estão cada vez mais ameaçados pela pressão e invasão de madeireiros, garimpeiros, posseiros e latifundiários.
“A gente lamenta que o Brasil esteja vivendo este momento trágico. Em torno de 15 a 20 mil garimpeiros ilegais atuam na Terra Indígena Yanomami. Isto é uma tragédia com tudo o que acarreta de envenenamento dos rios, poluição e desmatamento”, enfatiza Prezia, ativista da causa indígena desde 1983.
A Terra Yanomami é uma das maiores reservas indígenas do Brasil, localizada nos estados de Roraima e Amazonas, perto da fronteira com a Venezuela. O território foi homologado em 1992 e cobre mais de 96 mil quilômetros quadrados de floresta tropical.
A terra indígena em um país capitalista
O livro da Expressão Popular percorre diferentes contextos sociais e históricos não apenas dos povos indígenas em florestas, mas também em áreas de seca ou nas cidades. Em qualquer um desses ambientes, os indígenas enfrentam variados tipos de violência, afirma Prezia, que integrou o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) por oito anos.
A edição também é assinada pela professora, bióloga e antropóloga Luciana Galante, que participou de projetos na área ambiental junto aos povos Kulina e Kanamari, pela Operação Amazônia Nativa (Opan). A historiadora e antropóloga Beatriz Catarina Maestri igualmente contribuiu na elaboração do livro, mas faleceu em 2014, após vasta experiência como catequista franciscana ao lado de povos de Santa Catarina e São Paulo.
Além de uma homenagem a Maestri, a obra também é dedicada a dois professores Guarani-Nhandeva, Genivaldo e Rolindo Vera. Originários da aldeia Tekohá Ypo’i, no Mato Grosso do Sul, os irmãos foram assassinados na região de Dourados (MS), em 2009, sendo que o corpo de um deles ainda não foi encontrado. A região é considerada emblemática na luta pela terra, com mais da metade dos casos de assassinatos de indígenas do país, de acordo com o Cimi.
Diante desse contexto, Prezia ressalta a importância de mobilizações pela valorização das culturas indígenas. Ele defende a criação de grandes frentes de luta pautadas na informação e no trabalho de base. “A mídia alternativa precisa ter ainda mais força, porque a mídia hegemônica é um desastre. Nós estamos em uma fase de recuo, onde a mídia alternativa é muito cerceada”, enfatiza.
“Quando a gente vê [o slogan] “agro é tech, agro é pop, agro é tudo”, da Globo, eles usam de uma roupagem bonita para mostrar os vários segmentos da agricultura. Então, muita gente se empolga e acha que é por aí mesmo, que os índios são preguiçosos e que é preciso abrir frentes de expansão para o agronegócio”, completa.
O agronegócio, modelo de produção agrícola baseado no monocultivo, no grande latifúndio e no uso ostensivo de agrotóxicos, consome cerca de 70% dos recursos de terra e água do planeta.
Sustentabilidade
“Nós sabemos que o homem branco não entende nosso modo de ser. Para ele, um pedaço de terra não se distingue de outro, pois é um estranho que vem de noite e rouba da terra tudo de que precisa. Trata sua mãe, a terra, e seu irmão, o céu, como coisas a serem compradas ou roubadas, como se fossem peles de carneiro ou brilhantes contas sem valor. Seu apetite vai exaurir a terra, deixando atrás de si só desertos”, escreveu o cacique Seattle em 1855.
Para viver nas florestas, os povos indígenas desenvolveram técnicas de sustentabilidade e domesticação de espécies vegetais comestíveis. A flora amazônica, por exemplo, é, em parte, uma herança viva de antigos habitantes indígenas, como mostra um estudo publicado pela revista Scienceem março de 2017.
Além de informar sobre as contribuições dos povos indígenas na preservação do patrimônio natural brasileiro, o livro da Expressão Popular também dá pistas de alguns dos costumes tradicionais que, segundo Prezia, podem inspirar a sociedade não-indígena, como o respeito e a valorização da mulher, da criança e do idoso, além da cultura de partilha e luta. O objetivo é que a obra chegue às escolas.
Edição: João Paulo Soares