Por Willy Delvalle, correspondente do DCM na Bélgica
O discurso do presidente Lula na abertura da Cúpula Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos)-União Europeia o projetou como um líder pela justiça global. União Europeia, Rússia, o Conselho de Segurança da ONU e o conjunto dos pobres ricos foram alvo de suas críticas. O chefe de Estado brasileiro se posicionou em diversos aspectos como porta-voz de reivindicações dos grupos dominados pela estrutura da política global.
América Latina
Para a América Latina, Lula reivindicou sua inserção na formação de uma “nova ordem multipolar nascente”.
Ele denunciou a discriminação da qual a América Latina é alvo na ordem global, ao mesmo tempo em que exigiu relações que revertam esse quadro.
“Precisamos de uma parceria que ponha fim a uma divisão internacional do trabalho que condena a América Latina e o Caribe ao fornecimento de matéria prima e de mão de obra migrante, mal remunerada e discriminada.”
Ele cobrou da União Europeia sua participação na redução das injustiças das quais o subcontinente é alvo.
“Com a Europa, compartilhamos uma longa história e laços econômicos e sociais. A cooperação entre as duas regiões deve refletir as realidades e prioridades de ambos os lados do Atlântico”.
“Para América Latina e o Caribe, isso se traduz num enfoque claro na redução das desigualdades e na erradicação da fome e da pobreza. Temos que encontrar caminhos para superar as assimetrias em desenvolvimento econômico e social. Iniciativas de mobilização de recursos e investimentos são bem-vindos e devem contemplar transferência de tecnologia e real integração de cadeias produtivas.”
“Para além dos fundamentais acordos comerciais, essa Cúpula CELAC-União Europeia representa um passo importante na direção do mundo que sonhamos, um mundo mais solidário, mais fraterno e menos desigual, que não seremos (capazes) de construir sozinhos”.
Minorias
Lula aproximou a América Latina da União Europeia em relação às ameaças que pairam sobre as minorias, em grande parte pelo extremismo e a desinformação.
“Nossas regiões estão ameaçadas pelo extremismo político, pela manipulação da informação, pela violência que ataca e silencia as minorias. Não existe democracia sem respeito às diversidades, sem que estejam contemplados os direitos das mulheres, negros, indigenas, LGBTQI+, pobres, imigrantes.”
A reivindicação dos direitos desses grupos o diferencia de outros líderes que tentam apresentar-se como porta-vozes dos interesses do Sul global, tais como a China ou a Rússia, cuja presidência se mostra hostil à comunidade LGBTQI+ ou ao feminismo.
O gesto também desafia a xenofobia ascendente na Europa, que resulta na ascensão da extrema direita em diversos países, tais como Itália, Finlândia e Suécia, estes dois últimos ex-tradicionais socialdemocratas.
Mercosul
O presidente do Brasil também portou as criticas dos países-membros do Mercosul às exigências da carta adicional apresentada este ano pela União Europeia, que prevê sanções aos países que “descumprirem” os tratados ambientais internacionais.
“A conclusão do acordo Mercosul-União Europeia é uma prioridade e deve estar na confiança mútua e não em ameaças. A defesa de valores ambientais, que todos compartilhamos, não pode ser desculpa para o protecionismo.”
Ucrânia e Conselho de Segurança da ONU
O presidente Lula criticou o parceiro de BRICS Rússia pela Guerra na Ucrânia. Ao mesmo tempo, o conflito revela para o chefe de Estado brasileiro a inoperância da governança global atual.
“A Guerra na Ucrânia é mais uma confirmação de que o Conselho de Segurança das Nações Unidas não atende aos atuais desafios de paz e segurança. Seus próprios membros não respeitam a Carta da ONU.
“Criticamos veementemente o uso da força como meio de resolver disputas. O Brasil apoia as iniciativas promovidas por diferentes países em favor da cessação imediata da hostilidade e de uma paz negociada.”
Lula elogiou a formação da integração europeia, ao passo que apontou nela um meio de saída para a Guerra na Ucrânia.
“A convergência entre nossas regiões não se restringe à independência entre economias. Ela também ocorre no plano de valores. A União Europeia é um exemplo da construção democrática. Seu legado no pós-II Guerra Mundial é uma comprovação de que podemos superar as mais profundas desavenças quando há determinação política em torno da paz.”
Sancionados
Em meio às sanções aplicadas pelo ocidente rico à Rússia pela invasão da Ucrânia, o mandatário brasileiro também enviou uma crítica ao norte global, pela aplicação de sanções unilaterais, isto é, sem o aval da ONU.
“Recorrer a sanções e bloqueios, sem o amparo do direito internacional serve apenas para penalizar as populações mais vulneráveis. Precisamos de paz para superar os grandes desafios que temos diante de nós”.
“Dividir o mundo em blocos antagônicos seria uma insensatez.”
Países pobres
O petista apontou a estrutura de governança global como fonte de pobreza e dominação no mundo.
“O atual modelo de governança global perpetua assimetrias, aumenta a instabilidade e reduz as oportunidades para os países em desenvolvimento.”
Lula citou a grave situação do Haiti e defendeu uma visão desenvolvimentista para viabilizar uma saída para a crise no país caribenho.
“Sua superação ocorrerá com a mobilização de recursos adequado para projetos de desenvolvimento estruturantes.”
O mandatário anunciou um dos destaques da próxima presidência brasileira do G20: “É inadiável reformar a governança global. Este será uma dos principais temas da presidência brasileira do G20. As legítimas preocupações dos países em desenvolvimento devem ser atendidas e precisamos estar adequadamente representados nas instâncias decisórias.”
Meio Ambiente
O presidente do Brasil expôs a negligência ambiental dos países ricos em relação ao princípio de responsabilidades comuns, mas diferenciadas.
O princípio prevê que os países ricos historicamente mais responsáveis pelas mudanças climáticas contribuam financeiramente com os mais afetados pelas consequências do aquecimento, os países pobres. Mas Lula ressaltou que o princípio é teórico.
“Mesmo com todos os sinais de alerta emitidos pelo planeta, ainda há quem negue a crise climática e mesmo os que não a negam hesitam em adotar medidas concretas. Em 2009, os países ricos se comprometeram a destinar 100 bilhões de dólares ao ano para os países em desenvolvimento como forma de compensação pelo mal que causaram ao planeta desde a revolução industrial. Este compromisso nunca foi cumprido.”
“Como se não bastasse, a guerra no coração da Europa veio para aumentar a fome e a desigualdade, ao mesmo tempo em que elevou os gastos militares globais.”
“Apenas em 2022, em vez de matar a fome de milhões de seres humanos, o mundo gastou 2,240 trilhões de dólares para alimentar a máquina de guerra que só causa mortes, destruição e ainda mais fome.”
Essa Cúpula Celac-União Europeia é uma forma de dizer ‘um outro mundo é possível, cabe a nós construí-lo com muitas mãos”.
Povos Amazônicos
Lula tentou desmistificar a ideia da Amazônia como “santuário ecológico”, sem deixar claro se isso passa por grandes projetos de “desenvolvimento” ou apenas pelo investimento internacional para que a floresta permaneça de pé e parte dos habitantes não sejam cooptados para sua derrubada.
“O mundo precisa se preocupar com o direito de viver bem dos habitantes da Amazônia.”
Balanço geral
Lula se apresentou como líder altermundialista? Provavelmente, sem questionar o modelo econômico capitalista global, mas sua disseminação pela ampliação do desenvolvimento para os países pobres. Ele agiu como um porta-voz de mais justiça global.
De modo geral, jornalistas e personalidades políticas consultadas pelo DCM avaliaram como positiva a recepção ao discurso do presidente brasileiro e que suas críticas já eram esperadas, sendo também uma das próprias motivações do evento.