Não existem mulheres machistas. Por Nathalí Macedo

Atualizado em 18 de outubro de 2016 às 17:03

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Em 2014, o Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) entrevistou homens e mulheres sobre culpabilização da vítima de estupro. A maioria das mulheres – mais de 66% do total de entrevistados – respondeu que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas.”

Mulheres que muito provavelmente já foram (quem nunca?) vítimas de algum tipo de assédio ou abuso, real ou potencialmente, e ainda assim reproduzem um discurso que coloca as vítimas no lugar de culpadas ou, no mínimo, coniventes com a violência que lhes é perpetrada, embora nem mesmo o Direito – conservador e patriarcal como sempre foi -admita tal possibilidade, já que, juridicamente, “não existe culpa concorrente da vítima.”

Lembro de ter escrito uma crônica sobre o assunto, decerto para dar vasão à minha perplexidade diante desse tema tão espinhoso para as feministas e mulheres em geral: o machismo reproduzido pelas próprias mulheres.

E quando digo “reproduzido” em vez de “praticado”, estou consciente do poder semântico destes termos: ninguém pode praticar violência contra si mesmo – ou ao menos não se estiver no controle de suas faculdades mentais.

É com essa consciência que só a paulatina desconstrução nos dá que avalio a pesquisa realizada pela Brandwatch, uma empresa monitoramento de mídia social, que constatou que ofensas misóginas no Twitter partem principalmente de perfis de indivíduos do sexo feminino, o que denuncia – desta vez no âmbito da Cybercultura – o machismo e a misoginia reproduzidos pelas mulheres.

“Mulheres machistas” são, diante da complexidade deste conceito, lendas quase tão risíveis quanto a misandria: Não podem existir, nem historicamente e nem socialmente.

Nós não criamos o machismo, e também não criamos a ideia de que mulheres são naturalmente competitivas, porque, pasmem: nós não temos sequer literatura para oprimirmos umas às outras.

Não temos referências sequer para nos definirmos enquanto mulheres – todas as respostas para o questionamento “o que é ser mulher?” estão conectadas a rótulos e conceitos determinados por uma elite intelectual ainda predominantemente masculina, se pensarmos que as mulheres só passaram a ser intelectualmente reconhecidas em uma escala considerável, por exemplo, a partir do Modernismo e, no Brasil, especificamente, a partir da contracultura.

O patriarcado nos vendeu tudo o que sabemos sobre nossa relação com nossas semelhantes, a não ser aquilo que nunca nos pôde ser tirado: Nossas vivências. E o nosso (árduo) trabalho é justamente desmitistificar a ideia de que nós, mulheres, somos responsáveis pelo machismo que reproduzimos, não para nos eximirmos da “culpa” – o que, por óbvio, não nos interessa – mas para articularmos formas eficientes de desconstrução de conceitos e ideologias que nos violentem, e que, não raro, nós mesmas ainda reproduzimos.
Isto não é imediato (e nem poderia ser, porque toda desconstrução exige leitura, vivências e maturidade.)

Então, sim, as mulheres ainda competem entre si. Competiram as mulheres pesquisadas pela Brandwatch, como competiram as adolescentes apreendidas recentemente por torturarem outra adolescente por ciúmes do namorado de uma delas, porque esta é a única maneira que a mídia, as artes e a sociedade em geral nos apresentaram para que nos relacionemos umas com as outras.

Uma coisa, portanto, é constatar tal fato – incontestável – outra coisa é atribuí-lo à competição “natural” entre as mulheres, porque o machismo não é orgânico ou biológico, é construção social. E toda construção social nos atinge diretamente, e continuará nos atingindo até que sejamos capazes de desconstruí-las.

Em um país que traz de volta o primeiro-damismo e inaugura, em 2016, uma Escola de Princesas, temo que tal desconstrução se torne cada vez mais difícil.