Que Jair Bolsonaro é um inimigo das minorias e das parcelas mais vulneráveis todo mundo sabe. Mas nem o mais pessimista poderia imaginar o que viria pela frente em termos de perseguição aos povos indígenas.
Bastou tomar posse e logo nas primeiras horas de seu governo o presidente já usava a caneta para retaliar as comunidades: editou uma medida provisória e um decreto esvaziando as principais atribuições da Fundação Nacional do Índio (Funai).
Deslocou para o ministério da Agricultura, órgão que representa interesses do setor ruralista, a prerrogativa de delimitar terras indígenas e de quilombolas, e de conceder licenciamento para empreendimentos que possam atingir esses povos. Em outra decisão polêmica, ordenou a mudança da Funai do ministério da Justiça para o da Mulher, Família e Direitos Humanos.
“São medidas que visam o etnocídio, a desindianização, como era chamada a integração da população indígena durante a República Velha”, comenta Silvia Beatriz Adoue, professora da Escola Nacional Florestan Fernandes e da Unesp (Araraquara).
Tantas mudanças em tão pouco tempo, segundo ela, evidenciam o risco que é expor a proteção das terras indígenas aos interesses do agronegócio.
“As plantações de soja, cana, eucalipto e pinho, por exemplo, hoje beiram os territórios dos povos tradicionais. E encontram no modo de vida e na espiritualidade indígena uma fronteira intransponível”, pontua a professora.
“Não tem como integrar essas áreas às práticas produtivo/extrativas do capital. Pretende-se o abandono de sua forma de vida, que é antagônica com a civilização do capital”.
As ameaças não pairam apenas sobre os direitos territoriais das comunidades.
Numa outra decisão, considerada ainda mais dura, Bolsonaro ordenou ao ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que promovesse a extinção da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai).
Ligada ao Governo Federal, cabe a ela administrar os 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas que existem no país, e que cuidam do oferecimento de serviços de saúde às comunidades.
A proposta provocou protestos em São Paulo, Brasília, Manaus e Porto Velho e fez com que o ministério voltasse atrás.
“O ministério achava que deveria somar à nova Secretaria nacional de Atenção Básica e Indígena”, desconversou Mandetta. “Como os índios entendem que deve permanecer, porque tem uma luta histórica, porque é simbólico, e porque ali se reforça a sua cultura, a sua identidade, nós vamos manter”.
Criada em 2010, a secretaria responde a uma antiga demanda do movimento indígena: a de que as ações relativas à saúde dessas populações devem ser tratadas em âmbito federal.
“A criação da secretaria promoveu a expansão e uma melhora importante no oferecimento de serviços de saúde às comunidades”, explica o deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP), que era ministro da Saúde quando o órgão foi criado no segundo governo do presidente Lula.
Uma das justificativas do ministério da Saúde para a extinção da secretaria é a determinação de repassar algumas das suas atribuições aos municípios.
A proposta, no entanto, é vista como um retrocesso pelos especialistas, inclusive porque alguns territórios são imensos e ultrapassam os limites não apenas dos municípios, mas também de Estados – é o caso, por exemplo, das terras dos yanomamis na região Norte do país.
No segundo semestre do ano passado, durante a transição, Bolsonaro sinalizou que não iria manter o Mais Médicos e quase 10 mil profissionais cubanos deixaram o país.
Praticamente toda coletividade nativa ficou sem atendimento e não há perspectiva de que esse quadro possa se reverter no curto prazo.
Os resultados negativos já começam a aparecer.
No ano passado, segundo Padilha, o país perdeu o certificado de erradicação do sarampo e a preocupação é de uma epidemia.
“Saúde, por lidar com vidas humanas, e meio ambiente, são duas áreas cruciais que não podem ser desprezadas pelas políticas públicas porque seus efeitos negativos não podem ser revertidos”, diz o deputado. “Neste sentido, a vigilância da sociedade tem que ser redobrada”.
Nesta semana, em nova ofensiva contra as comunidades, o ministro da Justiça, Sergio Moro, autorizou o uso da Força Nacional de Segurança na praça dos Três Poderes e na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, por causa de uma manifestação, o Acampamento Terra Livre, que ocorre há 15 anos.
O acampamento está previsto para acontecer entre os dias 24 e 26 de abril, mas hoje, 19 de abril, em que se celebra o Dia do Índio, já começam as manifestações.
Durante uma transmissão via Facebook, Bolsonaro se referiu ao evento como “encontrão” e disse que quem iria pagar a conta era o “contribuinte”.
Sônia Guajajara, uma das organizadoras, rebateu o presidente dizendo que o acampamento será realizado com recursos de doações e sem dinheiro público.
Ela disse que vai apresentar um projeto de decreto legislativo para sustar portaria de Moro, justificando que se trata de “uma tentativa de impedir a livre manifestação”.
Não satisfeito, Bolsonaro voltou à carga na quarta, 17, em nova live, desta vez atacando a legislação que protege os territórios nativos, ONGs e a postura da imprensa internacional a respeito do tema.
A transmissão foi realizada ao lado de quatro indígenas de diferentes etnias. O presidente defendeu a exploração mineral e a agricultura em reservas. Disse aos indígenas que eles “vivem em uma belíssima terra, mas não faz sentido não fazer o uso delas”.
Também defendeu a construção de usinas hidrelétricas nos territórios e criticou a proibição da produção de arroz na reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.
Para variar, atacou a esquerda, reafirmando que as políticas públicas para as comunidades vão mudar em seu governo.
“Vocês têm bastante terra, vamos usar essas terras. Há trilhões de dólares embaixo da terra. Vamos continuar sendo pobres?”, questionou.
Sônia Guajajara se mostra preocupada, mas confiante diante do desastre anunciado.
“Estamos na pauta do país”, diz ela.
“Por um lado é ruim, pois a paralização das demarcações, e até mesmo a tentativa de reversão daquelas existentes, constituem o foco central do governo. O lado positivo é que nunca recebemos tanta solidariedade como agora”.
Sônia conta que a retirada das atribuições da Funai do ministério da Justiça não é uma proposta nova e já foi tentada no período da Ditadura militar.
“Trata-se de um projeto que foi tentado sem sucesso pelo presidente João Figueiredo”, conta ela. “Como se vê, nossa luta é histórica. O momento é perigoso, mas com determinação é possível reverter”.