Ana Gomes tornou-se, neste domingo, a mulher mais votada em eleições presidenciais em Portugal.
Porto fechou a contagem. Marcelo Rebelo de Sousa tem 60,01% dos votos e ela conquistou 15,58%.
Ultrapassou o fascistóide André Ventura.
“Se eu não estivesse nesta disputa estaríamos hoje a lamentar ainda mais a progressão da extrema-direita”, diz ela.
Recentemente, ela foi peremptória sobre o Brasil: “Não iria à posse de Bolsonaro”.
Exercer advocacia era, inicialmente, o sonho de Ana Gomes e em 1979 terminou a licenciatura em Direito na Faculdade de Direito de Lisboa. Mas foi na diplomacia que encontrou a sua verdadeira vocação.
Um ano depois de terminada a licenciatura, com 26 anos, Ana Gomes foi desafiada por amigos a entrar no concurso para o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) – uma ideia que nunca lhe passara pela cabeça. “Assim fiz, um pouco desportivamente, porque gostava de estar a trabalhar no escritório e era monitora na faculdade. Mas acabei [o concurso] classificada em primeiro lugar, o que decidiu a minha vida”, revela a diplomata à revista Máxima.
Uma mulher na carreira diplomática era uma novidade na altura. O concurso em que Ana Gomes participou foi o terceiro aberto a mulheres após o 25 de abril. No livro “Ana Gomes, a vida e o mundo”, da autoria do jornalista do Diário de Notícias João Pedro Henriques, a socialista admite que os primeiros tempos neste meio ainda muito dominado pelo sexo masculino não foram fáceis. “Vi resistência de alguns diplomatas mais velhos e vi resistência de algumas mulheres de diplomatas”, revela Ana Gomes, num excerto do livro publicado pelo jornal Público.
Era já funcionária no MNE quando, em 1982, foi convidada para ser assessora diplomática do então Presidente da República Ramalho Eanes. “Foi por sugestão do chefe da Casa Civil [o embaixador Fernando Reino], que referiu as suas altas qualidades, a competência, o interesse pelos assuntos que lhe eram entregues e uma certa capacidade de crítica que não escondia quando considerava que isso podia contribuir para melhorar a tomada de decisões”, explica Ramalho Eanes à Visão sobre a decisão de convidar Ana Gomes para sua consultora. “A crítica era a característica mais interessante dela”, recorda o antigo chefe de Estado.
De 1986 a 1989 serviu na Missão Permanente nas Nações Unidas em Genebra e em 1997 coordenou a delegação portuguesa do Conselho de Segurança na ONU, em Nova Iorque. Foi aqui que começou a sua longa e marcante jornada na Indonésia, quando o Presidente Hadji Mohamed Suharto renunciou ao cargo, em 1998. “É aí que se decide abrir a secção de interesses de Portugal em Jacarta, no âmbito das negociações que já existiam entre o governo português e o indonésio”, explica Ana Gomes ao Diário de Notícias.
É em 1999 que Ana Gomes ganha notoriedade mediática ao viver um dos períodos mais marcantes da sua carreira, quando é convidada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros Jaime Gama para assumir o cargo de embaixadora de Portugal em Jacarta. Esta foi a primeira missão de Ana Gomes enquanto diplomata, ao negociar acordos de paz com o objetivo de garantir um referendo à independência de Timor-Leste, depois de duas décadas de ocupação indonésia.
Ana Gomes “foi uma das figuras audaciosas” naquela missão, recorda na Visão José Ramos-Horta, antigo Presidente de Timor-Leste e Nobel da Paz. A embaixadora “conquistou o respeito dos adversários, teve um papel fundamental e não hesitava em criticar o seu governo quando este não era coerente e ativo na questão de Timor”, acrescenta o antigo líder timorense, que descreve Ana Gomes como uma “mulher muito dura, muito frontal, sem medos e sem prestar favor a ninguém”.
A missão acabaria por ser bem-sucedida, com o referendo a ser alcançado a 30 de agosto desse ano e a independência a ser proclamada em maio de 2002. O papel relevante de Ana Gomes valeu-lhe, na altura, o prémio de personalidade do ano, pelo Jornal Expresso, e o prémio dos Direitos Humanos da Assembleia da República.
O trabalho de Ana Gomes não ficaria, no entanto, por ali. Depois de os timorenses terem votado em massa na independência do país, as ruas de Timor foram palco de uma enorme violência, com as milícias pró-indonésias a não reconhecerem o veredicto das urnas.
“Seguiu-se uma enorme onda de violência das milícias pró-indonésias e cerca de 250 mil timorenses foram levados à força para Timor Ocidental. Passei a visitar essa parte de Timor com o João Câmara que havia estado preso com o Xanana Gusmão e que, mais tarde, foi funcionário da Embaixada. Tentávamos persuadir as pessoas a voltarem para Timor-Leste, garantindo-lhes que seriam bem-vindos. Foi um trabalho arriscado – eu cheguei a ter uma catana apontada à cabeça -, mas exaltante”, disse Ana Gomes em entrevista à Máxima. (…)
Em 2002, Ana Gomes deixa Jacarta para trás e, com ela, a carreira de diplomata. Regressa a Portugal onde encontra uma conjuntura política diferente daquela de quando tinha partido. António Guterres, há seis anos no Governo, tinha-se demitido após a derrota socialista nas autárquicas de 2001. Ferro Rodrigues assumiu os comandos do PS, mas acabou por perder para Durão Barroso, do PSD, nas legislativas de 2002.
“Fiquei irritada por o Ferro, um homem extremamente sério, ter perdido as eleições. No dia seguinte, fui ao Largo do Rato inscrever-me como militante do PS”, relembra Ana Gomes na Máxima. (…)
Foi nesta altura que Ana Gomes conheceu o seu primeiro marido, António Monteiro Cardoso, também ele militante do MRPP. Tinham os papéis do casamento prontos a entregar precisamente a 25 de abril de 1974, quando Ana Gomes tinha 20 anos. Casaram-se um mês depois. Fruto desse casamento nasceu Joana Gomes Cardoso, a única filha de Ana Gomes. Com o nascimento da filha, em agosto de 1975, Ana Gomes decidiu abandonar a política e sair do MRPP. Voltou a trabalhar como secretária e reingressou aos estudos durante a noite na mesma faculdade. Terminou a licenciatura em direito quatro anos após o nascimento da filha.
14 anos no Parlamento Europeu
A passagem por Jacarta e o seu papel na independência de Timor-Leste atribui a Ana Gomes um grande reconhecimento e passou a ser um alvo desejável. Depois de se juntar ao PS, o primeiro-ministro Durão Barroso convidou Ana Gomes a juntar-se ao PSD, um pedido que recusou de imediato. “Não tenho nada que ver com o teu partido”, disse a antiga embaixadora. Dias antes, Ana Gomes tinha também recebido um convite de Ferro Rodrigues para assumir o cargo de dirigente nacional do PS.
Foi secretária nacional para as Relações Internacionais do Partido Socialista entre 2003 e 2004. Neste último ano foi eleita eurodeputada pelo PS, uma nomeação proposta, entre outras pessoas, pelo atual presidente da Assembleia da República e seu amigo, Eduardo Ferro Rodrigues. “Eu tenho muito orgulho por a ter seduzido para a política. Foi uma grande deputada no Parlamento Europeu, proposta por mim e pelos dois secretários-gerais do PS que me sucederam. E no momento em que fui miseravelmente caluniado, em 2003, a Ana foi igual a si própria: verdadeira, frontal, corajosa. Ter o coração ao pé da boca nos momentos que vivemos ainda é mais importante do que há 20 anos”, diz Ferro Rodrigues, citado pela revista Máxima.
Nos 14 anos que esteve no Parlamento Europeu, Ana Gomes distinguiu-se pelos temas ligados aos Direitos Humanos, ao combate à corrupção e à criminalidade económica e financeira.
Ana Gomes foi uma voz ativa no negócio dos submarinos. Enquanto assistente no processo, a eurodeputada admitiu desde o início que existiam suspeitas de corrupção e defendeu a reabertura do processo, solicitando uma investigação a Paulo Portas e a Durão Barroso. O processo acabou, no entanto, por ser arquivado.
Nos últimos meses, Ana Gomes tem também sido participativa em temas como o Football Leaks e o Luanda Leaks, assumindo uma posição controversa em relação ao pirata informático Rui Pinto.
No caso de Isabel dos Santos, Ana Gomes escreveu vários tweets a acusar a filha do antigo Presidente de Angola de lavagem de dinheiro e apontou o dedo a algumas instituições portuguesas, acusando-as de serem “coniventes” com os esquemas fraudulentos da empresária angolana. (…)
António Campos, um dos fundadores do PS, dizia em setembro que não iria, de “certeza absoluta”, votar em Ana Gomes. Ao semanário Sol, Campos descreve a socialista de “muito populista” e “um bocado justiceira”. O presidente do PS, Carlos César, também descartou o voto em Ana Gomes, argumentando que nunca apoiará “um candidato ou candidata distante das pessoas, rude, divisionista”.
Citada pela revista Visão, Elisa Ferreira, atual comissária europeia e antiga colega de Ana Gomes na bancada do PS no Parlamento Europeu, admite que há “matérias em que, de facto, não se pode dizer que seja uma pessoa moderada”, mas sublinha: “essa é precisamente uma das características que a Ana não pode perder”.
O ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, também apelidou Ana Gomes de extremista, considerando a socialista “uma boa candidata, mas que não merece o apoio do PS”.
“Não sou nada extremista”, responde Ana Gomes em entrevista no podcast Perguntar Não Ofende. “Mas se essa crítica do extremista é a mesma do radical que também me querem lançar, depende do que é. Se é contra a corrupção, a falta de ética, de isenção na vida política sim, sou extremista e radical”, acrescenta.
A diplomata chegou mesmo a ser comparada a um rottweiler. Em conversa com diplomatas americanos em 2010, Jorge Roza de Oliveira, ex-assessor diplomático de José Sócrates, terá descrito Ana Gomes como “uma senhora muito excitada, pior do que um rottweiler à solta”. (…)