Não reduzam Jô Soares a uma dúzia de bordões. Por Moisés Mendes

Atualizado em 5 de agosto de 2022 às 16:40

Publicado no Blog do Moisés Mendes

Jô Soares
Foto: Reprodução

Será que um cara múltiplo como Jô Soares vai gostar de ficar ouvindo, depois de morto, todo mundo repetindo na redes sociais os bordões dos seus personagens?

O Globo tem a manchete e mais seis chamadas na capa sobre a morte de Jô. Nenhuma destaca os bordões.

Destacar os bordões seria a forma mais preguiçosa de fazer jornalismo numa hora dessas.

O jornal destaca frases dele, mas não bordões dos personagens.

A Folha também tem a manchete e mais seis chamadas. Nenhuma chamada sobre bordões.

O Estadão repete o mesmo número de seis chamadas abaixo da manchete. Mas tem uma sobre os bordões.

O cara foi um dos mais completos artistas brasileiros, genial como ator de humor. Escrevia crônicas, ficção, peças, atuava e dirigia no teatro, dançava, era entrevistador, falava uma dúzia de línguas.

Defendia a democracia, atacava o fascismo e corria riscos dentro da Globo como voz contra extremistas de direita disfarçados de liberais.

E as pessoas se apegam ao que aparentemente é mais singelo e afetivo, mas é também o mais empobrecedor.

Bordões são falas de personagens que identificam um artista pop. Mas não podem ser o que mais se destaca quando morre alguém com a dimensão de Jô Soares.

Globo e Folha foram respeitosos. Destacaram a trajetória de alguém com uma trajetória única, e não as falas das figuras que ele criou.

Ah, dirão, mas foi assim que ele se tornou pop. Há muitas décadas Jô não era mais os personagens da TV.

Uma Carta

A melhor chamada sobre o que foi o Jô Soares militante da democracia está na capa da Folha:

“Jô ensinou a Bolsonaro o que era nazismo em cartas abertas”

Uma das cartas:

CARTA DE JÔ SOARES A BOLSONARO EM 12 DE ABRIL DE 2019
Caro presidente Jair Bolsonaro. Entendo a reação provocada quando o senhor afirmou que o nazismo era de esquerda. Isso se deve ao fato de que, depois da Primeira Guerra Mundial, vários pequenos grupos se formaram, à direita e à esquerda.

Um desses grupos foi o NSDAP —em alemão, sigla do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. Entre seus fundadores originais havia dois irmãos: Otto e Gregor Strasser. Otto era um socialista convicto, queria orientar o movimento do partido à esquerda. Foi expulso e a cabeça posta a prêmio.

Seu irmão Gregor preferiu unir-se ao grupo do Camelô do Apocalipse. Quanto a Otto, que não concordava com essa vertente, nem com as teorias racistas, teve sua cabeça posta a prêmio por Joseph Goebbels pela quantia de US$ 500 mil. Foi obrigado a fugir para o exílio, só conseguindo voltar à Alemanha anos depois do final da guerra. Hitler apressou-se em tirar o ‘social’ da sigla do partido. Mais tarde, Gregor foi eliminado junto com Ernst Röhm, chefe das S.A., na famigerada ‘Noite das Facas Longas’.

Devo lhe confessar que também já fui alvo de chacota, mas por um motivo totalmente diferente: só peço que não deboche muito de mim.

Imagine o senhor que confundi o dinamarquês Søren Aabye Kierkegaard, filósofo, teólogo, poeta, crítico social e autor religioso, e amplamente considerado o primeiro filósofo existencialista, com o filósofo Ludwig Wittgenstein, que, como o senhor está farto de saber, foi um filósofo austríaco, naturalizado britânico e um dos principais autores da virada linguística na filosofia do século 20.

Finalmente, um conselho: não se deixe influenciar por certas palavras. Seguem alguns exemplos:

1. Quando chegar a um prédio e o levarem para o elevador social, entre sem receio. Isso não fará do senhor um trotskista fanático;

2. A expressão ‘no pasarán!’, utilizada por Dolores Ibárruri Gómez, conhecida como ‘La Pasionaria’, não era uma convocação feminista para que as mulheres deixassem de passar as roupas dos seus maridos;

3. ‘Social climber’ não se refere a uma alpinista de esquerda;

4. Rosa Luxemburgo não era assim chamada porque só vendia rosas vermelhas;

5. Picasso: não usou o partido para divulgar seus gigantescos atributos físicos;

6. Quanto à palavra ‘social’, ela consta até no seu partido.

Finalmente, adoraria convidá-lo para assistir ao meu espetáculo.
Foi quando surgiu um dilema impossível de resolver. Claro que eu o colocaria na plateia à direita. Assim, o senhor, à direita, me veria no palco à direita. Só que, do meu lugar no palco, eu seria obrigado a vê-lo sempre à esquerda.

Espero que minha despretensiosa missiva lhe sirva de alguma utilidade.

Convicto de ter feito o melhor possível, subscrevo-me.”

Jô Soares, Influenciador analógico

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