Deputada federal em segundo mandato e natural de Presidente Prudente, do interior de São Paulo, Sâmia Bomfim se destacou na luta das feministas contra o PL 1904, que pode condenar mulheres e meninas que abortam a 20 anos de prisão. A pena supera a punição por homicídio, o que rendeu o apelido de “PL do Estupro” ou “PL dos Estupradores”.
Arthur Lira jogou a votação desse PL para o segundo semestre. A deputada e a bancada do PSOL defendem seu arquivamento.
Em uma entrevista ao DCMTV, Sâmia falou um pouco da sua trajetória política, de como a luta feminista guia seu mandato, se ela tem ambições além da sua atuação como deputada e quais as críticas a parlamentar tem ao governo Lula.
Confira os principais pontos.
Sâmia presidente
Nunca pensei se seria ou se quero ser presidenta do Brasil. Não quero parar apenas como deputada federal na política, mas acredito que eu ainda tenho papel a cumprir como parlamentar.
Talvez mais para frente e com mais idade, com mais experiência se eu ainda tiver com saúde mental, disposição e a convicção que eu tenho hoje, né? Daí vamos encarar outras tarefas.
Acho mesmo que tenho um papel a ser cumprido como parlamentar, como militante. Os temas e a forma como eu me porto na política cabe ainda para uma disputa no Legislativo.
Vamos exigir o imediato arquivamento do PL 1904 porque não há maoria possível num projeto que parte da premissa de criminalizar mulheres e meninas brasileiras.
Após o assassinato do meu irmão [Diego Bomfim], eu comecei a fazer terapia duas vezes por semana. Não fazia antes, mas passei porque precisava minimamente organizar a cabeça. É um trauma muito profundo e que modifica muito a sua vida.
Tenho meu filho, minha família e minhas coisas que me animam. Descanso e tomo minhas cervejinhas de vez em quando. Tenho altos e baixos. Antes de estourar essa mobilização contra o PL do Estupro, disse a amigos que estava me sentindo desanimada, com muita derrota e sem espaço para fazer luta.
De repente, vem uma onda que te movimenta. É uma luta tão bonita. O movimento das mulheres de onde eu venho. Fui do movimento estudantil e, antes de me eleger como vereadora em São Paulo, lá em 2015, existiu uma onda muito significativa de luta feminista na época contra o [Eduardo] Cunha. Meu local de partida é esse.
Luta pelos pisos de Saúde e Educação no governo Lula
Desde a Constituição de 1988, temos a determinação de que saúde e educação não podem ter um orçamento menor. No caso da educação, é 18% da receita corrente líquida, ou seja, 18% do total de impostos arrecadados.
E a saúde é menos do que 15%. A lei do arcabouço fiscal deste governo é tão restritiva que, para o arcabouço funcionar, tem que quebrar esses pisos, ou seja, tem que abaixar esses orçamentos.
Sobre o PL 6224, de fato, a gente teve uma discussão do arcabouço fiscal. O PSOL em conjunto votou contra ele justamente alertando o que significaria. Ele não repete o teto de gastos porque ainda prevê algum tipo de ampliação de arrecadação. Mas, novamente, tem um limite na capacidade de investimento do Estado.
A gente já alertou na época. É uma questão matemática simplesmente que não cabe dentro das regras do arcabouço fiscal. E agora isso já vem sendo publicamente sinalizado pelo governo Lula. Às vezes a gente vê que existe um um sinal trocado dentro do governo.
O Lula se pronunciou. Disse que é contra mexer, que não tem cabimento. Mas, dentro do ministério da Fazenda e na opinião da ministra Simone Tebet, para eles isso cabe. Haddad já deu declarações públicas de que sim, cabe.
Isso é uma discussão que a gente fez em uma audiência pública na semana passada e convidou os membros do Ministério da Fazenda. Foi um representante do Tesouro. E ainda não foi apresentada uma proposta ao Congresso Nacional ainda.
O governo diz que leva em conta outras possibilidades de fazer novamente alteração no modelo previdenciário no arcabouço. Simone Tebet chama isso de “modernizar”, né? Modernizar o BPC, modernizar as contas públicas. Isso, na prática, é fazer ajuste sobre o povo e principalmente o povo que mais precisa dos investimentos públicos.
A gente apresentou esse projeto de lei que é assinado também por alguns outros parlamentares da nossa bancada. A ideia é justamente trazer esse debate. Somos contra a lógica do arcabouço fiscal e para retirar a saúde e a educação dele. Se não mudar, isso necessariamente vai implicar na modificação dos pisos.
No período pré-eleitoral é difícil que esse tema entre na mesa, porque não tem condição política. É um ajuste sobre o povo no momento eleitoral. Acredito que no pós eleições isso deve ir pra mesa da Câmara. É algo muito preocupante com os trabalhadores em greve na educação do ensino superior, dos institutos federais e das universidades.
Lula deu uma declaração de que é contra mexer nessas áreas e nos pisos. Vamos então aprovar esse PL para que a gente tenha fôlego de investimento no Brasil, sobretudo nas áreas sociais que é o que precisa. No primeiro ano do governo Lula foi o ano que teve mais investimentos. Porque tinha a PEC de transição que a gente aprovou no final de 2022.
PEC que suspendia algumas das regras fiscais para poder investir em Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, reajustar o salário mínimo. Ou seja, o dinheiro do Estado melhorou a economia no Brasil.
A gente precisa conseguir cumprir minimamente o programa com o qual o Lula foi eleito em 2022. O aspecto democrático das ideias foi fundamental para derrotar o Bolsonaro. Foi isso que possibilitou a frente ampla.
O desgoverno durante a pandemia retrocedeu quando pressionado. Teve o auxílio emergencial e fez ataques contra a Previdência. Por isso, essa expectativa também existe sobre o governo Lula, ainda que tenha tido bons índices.
Volta às ruas
A esquerda voltou para as ruas. Quem propôs o projeto de lei do estupro subestimou completamente a nossa capacidade de reação e de mobilização. E não foi só os conservadores que propuseram que quebraram a cara. Acho que setores da esquerda progressista não apostaram na mobilização. E eles silenciaram sobre o projeto num primeiro momento.
Não me esqueço porque isso é público. A posição oficial do governo Lula até quatro dias atrás era de que não se meteria no PL, que não era uma questão de governo, que não tem posição, que isso é uma pauta de costumes. Nós temos que nos meter nisso. Jogando a toalha, os caras vão ganhar.
Eles tinham feito um acordo grande com o Lira, que envolve inclusive a sucessão da presidência da Câmara. Queriam garantir o candidato dele que é o Elmar Nascimento. Se ele conta com mais ou menos uns quase 200 votos que tem a bancada evangélica. Ele já sai na frente e ainda tira da disputa o Marcos Pereira, que é do Republicanos, que também é da bancada evangélica. Só que o Pereira é ligado ao Edir Macedo e o Sóstenes é ligado ao Malafaia.
Tem ali uma disputa de poder entre eles. Lira viu nisso uma oportunidade. O que aconteceu é que houve reação da sociedade, de todos os veículos de imprensa que praticamente também bateram forte no PL do Estupro. Acho que isso também contou com a grande mídia. Teve Luciano Huck, Ana Maria Braga, figuras que falam com uma dona de casa.
Eu sou uma das coordenadoras da bancada feminina. Mesmo que o PL 1904 não avance, eles querem pautar o debate, querem criar novas lideranças e referências nesse debate obscurantista. E fazer chacrinha, espetáculo em cima do tema. E o Lira se tornou alvo dos protestos nas ruas. Acabou assim porque operou uma manobra horrível. Ele é o responsável pela pauta da Câmara. Lira está negociando direitos tão importantes das mulheres, fazendo uma negociata para garantir a sucessão da mesa.
Tivemos uma conquista importante. Os reacionários estão recuados e não pautaram o mérito porque sentiram o peso das ruas. Sentiram o constrangimento de defenderem o PL do Estupro. O PL dos Estupradores. Mesmo assim, não acho que eles sossegaram.
O tema da eleição da mesa no final do ano vai pesar. Esse voto no projeto pode valer em dobro para garantir o Lira perpetuando o seu poder. Por isso que se esse movimento nos colocou novamente na rua, colocou a esquerda novamente na rua. Esse movimento deve servir também para nos ensinar que a gente não pode sair delas.
Se esse ataque, do PL do Estupro, vier de novo de forma fragorosa, a gente já aprendeu. Tem que repetir para ter força de barrar novamente.
Acho muito positivas as manifestações de rua. Nesse último mês tivemos a parada LGBTQIAP+, que foi surpreendente. Quer dizer. Ela sempre é crescente. A gente sempre pensa que depois dessa toda restrição, esse preconceito bolsonarista, poderia cair. E foi maior ainda. E logo depois teve a marcha.
Essas manifestações das mulheres ocorreram em vários estados simultaneamente. Depois a gente teve em São Paulo a Marcha da Maconha, que, ao contrário do que as pessoas dizem, não é a marcha pelas drogas.
É a marcha contra a criminalização do usuário, em especial pobres pretos que não têm dinheiro e que são criminalizados. Maconha que faz muito menos mal do que cachaça, por exemplo. Estou mais otimista do que há 10 dias.
Muita gente fala que o povo brasileiro é mole e não vai pra rua. Ele vai sim. Se a gente tem uma uma pauta que que que seja sensível, como foi essa questão do estupro, a gente consegue.
Nem por onde começar. Tá uma situação política e jurídica difícil. O que a extrema direita fez ao invés de ficar na defensiva? Ela convocou mobilizações de rua, né? No início do ano. Não teve o poder de fogo que eles já demonstraram antes, mas era gente na rua, na Paulista, defendendo os golpistas, defendendo os fascistas. Agora não tem mais mais segredo. Sabemos quem é quem na disputa política no país.
Algumas pessoas afirmavam que eles estavam indo para a rua e que a gente não tem condição de fazer o mesmo. Ou indo numa linha de que qualquer manifestação de rua pode ser desfavorável ao governo e portanto fortalece a extrema direita.
Falavam como se colocar a gente na rua para reivindicar direitos e para na prática enfrentar o programa da extrema direita significasse um momento de fragilidade pro governo Lula. Acho que é justamente o contrário.
A PEC das praias não chegou a ter mobilização de rua, mas teve de redes sociais e da opinião pública. Contra a privatização acho que também foi um momento importante de virada de disputa.
Acho que a esquerda tem que ser mais ousada para eles ficarem na defensiva, sabe? Nos próximos passos não pode ter medo mesmo de ir para esses temas, que eu coloco até como uma provocação.
Esses temas tem uma relação com uma questão geral e econômica da sociedade. Se você impedir as mulheres de abortar, significa impor uma maternidade compulsória e que elas estão ali unicamente para uma lógica da reprodução, sem que o Estado garanta assistência mínima no sentido de reduzir jornada de trabalho. Sem garantir creche ou garantir emprego.
Quando as mulheres conquistam a licença à maternidade, no atual estágio do capitalismo, essa lógica de exploração leva você impedir o direito ao aborto. Só que não é tão de imediato.
Talvez a gente não tenha ainda a mesma capacidade de mobilização para ataques que são profundos assim contra a nossa classe. Talvez falte ligar e falte mais lideranças que pautem o tema. É mais difícil fazer uma disputa de maioria, porque a grande imprensa esteve conosco nessa pauta.
Sinto, por exemplo, que a greve das federais está sendo muito forte e está no processo de encerramento. Conquistou muita gente mesmo. Mas mesmo na esquerda teve quem falou que não tem que entrar em greve porque isso enfraquece um governo bom.
Recentemente tivemos um anúncio de que vai ter mais investimento nos institutos federais. Mas acho que é apostar pouco na luta de classes, na boa e velha luta de classes.
Veja a live completa abaixo.
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