Publicado originalmente no Brasil de Fato:
Por Daniel Giovanaz
A estudante Maria Lúcia Ferreira Toledo, de São Paulo (SP), foi uma das 2,8 milhões de pessoas inscritas para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) que não compareceram aos locais de prova no último domingo (18). Os dois motivos que forçaram sua desistência têm relação com a pandemia.
“Primeiro, que eu não sou tão irresponsável quanto o governo Bolsonaro”, argumenta, criticando a realização das provas em pleno avanço da covid-19 no Brasil, sem protocolos sanitários adequados, na sua avaliação.
Maria Lúcia não tem computador em casa e relata uma série de problemas com as aulas a distância. O despreparo, do ponto de vista do conteúdo, foi o segundo motivo da abstenção, no seu caso.
“A gente estava sem aula, e o governo não fez absolutamente nada para resolver isso. Nem distribuição de celular, de chip. O sistema utilizado estava travando demais, então a gente não conseguia acompanhar nada”, lamenta. “A gente nunca teve estrutura para fazer o Enem 2020, desde que a pandemia chegou.”
“O ensino a distância não funcionou nas escolas. Foi uma complicação muito grande, a não ser para a galera que conseguiu pagar escola, pagar cursinho, e não foi o meu caso”, acrescenta a estudante. “A galera da rede pública já está um pé atrás, e no ano da pandemia a gente está uns dez.”
Os motivos elencados por ela explicam os 51,5% de abstenção na primeira etapa do exame – até então, o maior índice de abstenção era 37,7%, registrado em 2009.
“Era justamente o que vínhamos alertando quando pedíamos o adiamento do Enem”, lembra Iago Montalvão, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE).
“A gente falou o tempo todo que, para além de ser um risco à saúde pública criar esses espaços de aglomeração no Brasil todo, os próprios candidatos não estavam se sentindo seguros. E essa abstenção histórica foi a prova cabal disso.”
Para além da pandemia, o Brasil de Fato também ouviu candidatos que tiveram dificuldade ao acessar a internet para se inscrever ou enfrentaram problemas técnicos com a inscrição. Foi o caso de Daniel Anjos, de Aracaju (SE).
“Quando fui acessar o Portal do Usuário para acessar meu local de prova, o site pediu um código, que teria sido enviado por e-mail, mas nunca recebi”, relata.
A estudante Gabrielly Barbosa da Silva, de Santos (SP), diz que não compareceu à prova por uma questão de responsabilidade. “Eu sabia que a presença dos estudantes da prova vai alavancar muito os números da covid”, conta. “Além disso, eu não me sentia preparada. Tenho dificuldade no ensino virtual, então não consegui estudar direito este ano.”
Luana Oliveira Nobre deixou de fazer não apenas o Enem, mas os vestibulares da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) por medo da contaminação.
“Era muita gente indo fazer as provas, e eu fiquei com muito medo. Por causa da situação que a gente está no momento, eu não tive coragem de ir”, conta.
Depois de ouvir o relato de colegas que fizeram a prova e de ler o noticiário sobre o Enem, Luana diz que não se arrepende da decisão.
“Eu fiquei muito assustada ao ver as imagens. Alguns amigos meus que fizeram a prova disseram que parecia um carnaval”, completa.
Embora a maioria dos candidatos do Enem sejam jovens que não integram o grupo de risco da covid-19, muitos moram com pais, tios e avós e estão em isolamento porque não querem ser vetores do vírus.
“Eu não compareci à prova porque moro com duas pessoas do grupo de risco, uma idosa e um diabético, então seria muito complicado. Eu não poderia correr o risco de trazer o vírus para casa”, relata Isabela Prado, de Poá (SP). “Fazer essa prova já é contra as medidas sanitárias, e vemos que o Inep tratou a situação com certo descaso.”
Na avaliação de Alessandra Pellanda, coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pelo exame, cometeu uma série de falhas.
“O Inep trouxe poucas e confusas informações: havia estudantes às vésperas com dificuldade de compreender onde seria o local de prova e outros que foram impedidos de fazer a prova por lotação. A logística foi parca para resolver um problema muito maior, sobre o qual o MEC [Ministério da Educação] não deu atenção”, analisa.
Estudantes de baixa renda, com dificuldades no ensino a distância, podem representar a maior parte dos 2,8 milhões de desistentes. Afinal, a precariedade de acesso a internet e mesmo de um local adequado para estudo pode ter sido determinante.
“Temos muitos estudantes em situação de dificuldades de saúde mental e que foram muito prejudicados em termos de estudos pela pandemia. Isso também gera uma abstenção enorme, que poderia ter sido evitada se tivesse havido políticas inclusivas e de proteção assim como mudança de perspectiva na aplicação e formato da avaliação”, completa Pellanda, que foi favorável ao adiamento do Enem.
O Brasil de Fato questionou o Inep sobre os pontos levantados pelos estudantes e aguarda retorno.