“Naturalmente ignorante e voluptuoso”: Bolsonaro e o déspota de Montesquieu. Por Aldo Fornazieri

Atualizado em 6 de agosto de 2019 às 10:14
Jair Bolsonaro. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

POR ALDO FORNAZIERI

Montesquieu foi um dos últimos pensadores políticos clássicos a tratar das formas de governo, circunstância que chamou a atenção de Hannah Arendt. No Espírito das Leis ele vê três formas de governo: a república, que pode ser democrática ou aristocrática; a monarquia e o despotismo. Nenhum outro autor definiu tão bem as características gerais do déspota, do tirano, do ditador. Ao se ler sobre essas características é quase impossível não estabelecer uma relação de algumas características déspota de Montesquieu com Bolsonaro. O Brasil, claro, não tem uma forma de governo despótico em vigor. Mas é evidente a vontade de Bolsonaro de ser um déspota, um ditador. A advertência do ministro do STF, Celso de Mello, de que há em Bolsonaro um “indisfarçável autoritarismo” e uma recorrente tendência de “transgressão autoritária” da Constituição precisa ser levada a sério. Bolsonaro não é apenas um parlapatão inconsequente. Ele é um homem perigoso, que usa a mentira como método e a admissão de erros como ardil e disfarce para continuar cometendo agressões à democracia, à Constituição e ao Estado de Direito.

O que caracteriza o despotismo, segundo Montesquieu, é que o poder seja exercido por um homem só, “um homem cujos cinco sentidos dizem incessantemente que ele é tudo e os outros nada são”. Mas o desponta tem algumas marcas de caráter inconfundíveis: “é naturalmente preguiçoso, ignorante e voluptuoso”. Bolsonaro já deu mostras claras de ser exatamente isso: em 28 anos de mandato parlamentar nada produziu de útil e de digno de nota, já declarou que não é apto a exercer a presidência da República, delega as tarefas de administrar o Estado a outros e abandona os negócios públicos ocupando-se de frivolidades, de assuntos secundários e de questões que agridem a cidadania, o bom senso, a ciência, os direitos e a civilização.

Na medida em que o déspota é preguiçoso e ignorante de um lado, mas de outro é voluptuoso e sedento de poder, ele abandona os negócios públicos para se ocupar com aquilo que lhes dá prazer, as chamadas “paixões brutais”, e gostaria que o governo fosse tocado por um só ministro, pois se vários ministros têm poder haveria conflito e o déspota não quer conflitos nem no governo e nem na sociedade. O poder envolve o conflito, o espaço da pluralidade e da diferença. Por isso, a ambição de todo déspota é substituir o exercício do poder pela violência. O desejo íntimo de Bolsonaro é exatamente este. Ele quer a demissão sumária de quem o contraria. Se tivesses força suficiente, não demitiria apenas o diretor do Inpe, mas fecharia o Instituto, acabaria com a Ancine, suprimiria as universidades públicas, mandaria um cabo e um soldado fechar o STF e colocaria trancas no Congresso. No governo despótico não há deliberação acerca dos negócios públicos. Há apenas a manifestação da vontade do déspota e o cumprimento de sua vontade como uma ordem.

Montesquieu destaca que o princípio do governo despótico, o que o move, é o medo. Para impor-se pelo medo, ele se cerca de pessoas em quem ele confia e que lhe devotam uma obediência cega. Pessoas competentes, capazes, autônomas, são perigosas para o déspota. Essas, por mais capacitadas que sejam, devem ser extirpadas do governo. Os expurgos são constantes. Não é por acaso que Paulo Guedes, Sérgio Moro, Augusto Heleno, entre outros se tornaram marionetes nas mãos de Bolsonaro. Esses ministros também são servos do medo: “cumpre, portanto, que o medo aniquile todas as coragens e extinga até o menor sentimento de ambição”.

O déspota não governa segundo as leis, a Constituição e as instituições, pois elas limitam a sua vontade ilimitada de poder. Para suprimir as limitações, os déspotas agem pela violência. Bolsonaro é pródigo nessa vontade: já propôs o fuzilamento de FHC, o extermínio de petistas, defendeu torturadores, elogiou ditadores sanguinários e manifestou admiração por Hitler.

O déspota, movido pelo seu desejo ilimitado de poder, não se sente obrigado a manter a sua palavra, os seus juramentos, a sua coerência. Contradiz no minuto seguinte o que afirmou no minuto anterior e naturaliza a mentira e a incoerência como métodos de ser e como métodos de agir. Para os déspotas tudo é válido para fazer valer a sua vontade. A vontade ilimitada só se viabiliza onde há o medo ilimitado.

Montesquieu acrescenta que nos Estados despóticos se exige a extrema obediência e que a vontade do déspota deve ter um efeito imediato, uma execução imediata. Não há contraditório, controvérsia, mediações, debates, obstáculos, alternativas discussões. A contraface de tudo isto é o castigo, complemento necessário do medo. “Recebeu-se a ordem e isso basta”, diz o Barão. Assim, assassina-se o debate, a negociação, que são atividades inerentes à pluralidade e à diferença. A nova política dos bolsonaristas é a antipolítica, a negação da política. É a manifestação pura da vontade de poder absoluto. E quanto esta vontade encontra resistência, contradição, oposição, ela tende a se transformar em violência. O fascismo e o nazismo, como formas de anulação do poder pela violência, nascem dessa impossibilidade do exercício do poder absoluto, dessa incapacidade da imposição da vontade absoluta por mecanismos normais e legais. Essa incapacidade descamba para a violência e é nisto que reside o perigo que representa Bolsonaro e seus seguidores.

Os governos despóticos procuram gerar a solidão nas pessoas, anulando as formas de convívio cívico. Participação, conselhos, conferências, tudo isto é calado e suprimido por representar riscos. O convívio político é perigoso. Na medida em que o medo é o princípio dos governos despóticos eles querem uma educação voltada para a disciplina e a obediência. Querem que a educação ensine preceitos, religiosos simples, orientados para a obediência. Não por acaso, o governo Bolsonaro e seus ministros da educação tentaram intimidar os professores, estimulando a prática das denúncias e do constrangimento da liberdade de cátedra. Gostariam de militarizar o ensino e subordiná-lo aos valores conservadores e à moralidade religiosa. “O saber aí será perigoso, a emulação, funesta”. Aviltar os sentimentos e fazer da educação um função servil é o objetivo dos governos despóticos.

Outra característica do déspota é que, ao mesmo tempo em que quer manter os cidadãos isolados para que não possam oferecer perigo ao seu poder, ele também se isola dos governados. Veja-se, por exemplo, que Bolsonaro quase não se expõe a plateias plurais, sobre as quais ele não tem controle. Ele tem frequentado encontros das Forças Armadas e das polícias ou tem ido a eventos nos quais há um controle rígido dos convidados. Montesquieu afirma que o déspota “tem tantos defeitos que deve temer expor publicamente a sua estupidez natural”. O governante despótico tende a reduzir o governo político e civil a um governo doméstico, a um governo da família e dos parentes.

Outra semelhança não é mera coincidência: “Nesses Estados (despóticos), a religião tem mais influência do que qualquer outro; é o temor adicionado ao temor”. Ou seja: se o medo é o princípio do governo despótico, ele quer duplicar esse mecanismo, impondo o medo pelo governo e impondo o medo pela religião. As religiões neopentecostais, que contaminam o espaço político brasileiro, não querem um pensamento crítico e o livre pensar dos seus fiéis. Querem ovelhas mansas, obedientes, temerosas dos castigos divinos que não passam de mentiras inventadas pelos pastores que estão mais preocupados em satisfazer sua cobiça pelo dízimo do que em salvar almas. Os mesmos pastores que dizem que Bolsonaro é a manifestação da vontade de Deus, numa evidente blasfêmia.