Negar o direito ao aborto a uma criança estuprada é prova de que falhamos como nação. Por Nathalí

Atualizado em 14 de agosto de 2020 às 15:32
Crédito: Stockphoto

Uma das (tantas) coisas irônicas do Brasil destes tempos é que muito se fala em proteger as nossas crianças – “como vou explicar isso aos meus filhos”, “estão fazendo lavagem cerebral nas nossas crianças com o kit gay”, delírios sobre masturbação de bebês e o escambau – ao mesmo tempo em que, cultural e socialmente, o que se faz é basicamente expor crianças a uma cultura que endossa a pedofilia. 

Duvida?

Cito um caso chocante e recentíssimo, o caso isolado número 1894782: 

Uma menina de 10 anos engravidou em São Mateus, Espírito Santo, após ser estuprada pelo próprio tio.

Ela contou à polícia que os abusos aconteciam desde que tinha seis anos, e que não denunciava o estuprador porque ele a ameaçava de morte. 

O homem não foi preso e o caso ainda está sob investigação, enquanto a possibilidade de aborto do feto ainda está “em análise” pela Secretária de Assistência Social do município.

Em análise.

O aborto de uma criança de 10 anos, estuprada, que pode ser obrigada a gestar outra criança – arriscando, inclusive, a própria vida.

Em. Análise.

Mesmo que a lei brasileira permita o aborto em caso de estupro, mesmo que o simples questionamento acerca do direito dessa criança de abortar seja exatamente o contrário de “proteger as nossas crianças”.

O que é que há de ser analisado em um caso terrivelmente óbvio como este? Se a criança consentiu que o tio a estuprasse?

Enquanto isso, o pedófilo está desaparecido – não pode ser chamado de foragido porque sequer há mandado de prisão contra ele. A dolorosa constatação à qual isso nos leva é que, no Brasil, é mais fácil ser pedófilo do que ser mulher (ou menina).

A Secretária de Assistência Social Marinalva Brodel afirmou que a autorização do abuso depende de autorização médica e judicial – o que significa um processo judicial longo.

Até quando? Até que a gestação da criança complete três meses e o aborto seja impossibilitado – como acontece, aliás, com muitas vítimas de estupro que recorrem ao judiciário a fim de conseguirem abortar legalmente?

Acontece que a lei brasileira – embora longe do ideal de respeito aos corpos das mulheres e meninas – não exige autorização médica e/ou judicial em casos como este.

A resposta da Secretária não está respaldada na lei (nem no bom senso) e não passa, na verdade, de uma postura comum do conservadorismo: a de questionar o aborto em qualquer circunstância, mesmo em se tratando de uma vítima de estupro e mesmo – pior ainda – em se tratando de uma criança.

Dificultar o acesso de vítimas de violência sexual ao aborto legal é uma prática institucionalmente comum no Brasil, e talvez uma das mais violentas contra as mulheres, mas fazê-lo a uma menina de dez anos é uma atrocidade. 

É desse tipo de coisa que precisamos “proteger as nossas crianças”.