No país em que crianças pretas são, não raro, abatidas pela polícia como animais ou simplesmente desaparecem – a bala perdida nunca acerta o filho do branco em Alphaville -, me parece que o racismo já não escandaliza ninguém: é manchete comum, fato corriqueiro, a menor das nossas desgraças.
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A violência mais feroz – aquela que literalmente mata, e que tampouco é suficiente para nos fazer repensar o racismo como parte sórdida da identidade nacional – é em geral perpetrada contra aqueles que além de pretos, são pobres: Ágatha Félix, João Pedro, Emilly Victoria, os meninos de Realengo – apenas algumas das 2.215 crianças negras mortas pela polícia no Brasil nos últimos três anos.
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Já a violência simbólica – que, indireta e estruturalmente, também mata – se estende a todas as crianças (e pessoas) negras, sem distinção de classe social. Que o diga Titi, filha dos globais Bruno Gagliasso e Giovana Ewbank, que sofre ataques costumeiros nas redes sociais (razão pela qual seus pais já moveram processos na justiça).
Na última segunda-feira, a menina Vitória, de apenas 4 anos, filha da funkeira Pocah (uma das participantes do BBB21), foi xingada publicamente de macaca, cabelo duro e neguinha fedida. O motivo? A mãe dela votou em uma participante favorita à vitória do reality show.
“Essa piranha da Pocah tem que vazar logo da casa pra ir cuidar daquela neguinha fedida que tá esperando ela em casa. Mexe com a Ju não”, escreveu um dos criminosos em um post público no Instagram.
A verdade é que, se não fosse por um reality show, seria por qualquer motivo forjado pela monstruosidade dessa gente que consegue, gratuitamente, odiar crianças pela cor de sua pele. Pior: gente que se sente autorizada a expressar esse ódio racista – criminoso, portanto – publicamente nas redes sociais, balizada pela certeza da impunidade no país em que fazer vista grossa pro racismo é quase esporte olímpico.
Embora tantas vezes não pareça, injúria racista é crime. Contra crianças, deveria ser crime hediondo. Identificar e punir esses criminosos não pode ser um compromisso apenas das autoridades e da família da vítima: isso também é problema nosso, porque queremos viver em um país onde crianças pretas não são mortas pela polícia ou chamadas de macacas no instagram.
A funkeira, que já mencionou o racismo sofrido por sua filha em um diálogo com outros confinados, se posicionou quando João – seu rival no jogo – teve seu cabelo comparado a uma peruca de homem das cavernas: “O mínimo que você pode fazer é pedir desculpas, sem justificar”, disse a Rodolfo, responsável pela piada racista.
Na ocasião, Pocah lembrou que sua filha Vitória havia dito odiar o próprio cabelo. “Eu não sei de onde ela tirou isso”, disse aos companheiros de reality.
Aprendeu na televisão – e suas atrizes de cabelos lisos, longos, impecáveis. Aprendeu na internet, com os youtubers brancos. Aprendeu na escola, de onde o racismo também não escapa. Infelizmente, ela pode ter aprendido em muitos lugares – ou em todos eles – porque, no Brasil, o racismo está, de fato, em toda a parte – incrustado na nossa história e na formação do Brasil.
Reconhecer o racismo como parte da identidade de uma nação ainda escravocrata é a única maneira de encará-lo com o mínimo de honestidade: somos todos filhos de uma memória racista, e ataques monstruosos como este não são um ponto fora da curva na nossa sociedade, são apenas uma expressão radical de uma mentalidade que nos acompanha enquanto nação.
E, sim, saber que uma criança negra foi humilhada por racistas na internet é de revirar o estômago, mas acredite: no Brasil, faz-se todos os dias contra as pessoas negras coisa muito pior.