Publicado originalmente no site Brasil de Fato
POR MARQUES CASARA
Em uma decisão que pode se tornar histórica, caso seja cumprida, a Nestlé anunciou a suspensão da compra de soja da multinacional Cargill, a maior empresa do mundo de capital fechado e uma das principais financiadoras do desmatamento da Amazônia. Segundo informações do Dow Jones Newswires, a Nestlé decidiu, em um prazo de até três anos, abolir o desmatamento em sua cadeia produtiva. É uma meta arrojada, principalmente porque a empresa tem uma intrincada rede de negócios na Amazônia e no Cerrado, biomas intensamente desmatado pelos setores predatórios do agronegócio.
O primeiro passo parece ter sido dado, já que a Cargill é a principal vilã da Amazônia. A empresa está conectada a uma extensa rede de fazendas que atua de forma predatória.
A razão alegada para o cancelamento dos contratos foi o fato de a Cargill não conseguir comprovar que a soja vendida para a Nestlé não vinha de áreas de desmatamento ilegal na Amazônia.
Devastar a Amazônia para plantar soja não é uma novidade. A própria Cargill havia se comprometido a não fazer isso, mas voltou atrás. Em junho passado, a empresa simplesmente anunciou que não vai cumprir o compromisso de parar de negociar soja proveniente de áreas de desmatamento. Leia aqui sobre o episódio.
Trabalho infantil e escravo na Nestlé
O anúncio da Nestlé pode representar um enorme avanço nas relações comerciais na Amazônia. Ao descredenciar a Cargill, mesmo que isso implique no corte de fornecedores, a Nestlé parece ouvir o recado da comunidade internacional: chega de desmatamento, chega mortes, chega de crimes ambientais.
Mas não é suficiente. A Cargill, principal fornecedora de cacau para a fabricação de chocolates Nestlé, é financiadora de trabalho infantil e escravo nesta cadeia produtiva. Oito mil crianças e adolescentes trabalham ilegalmente em lavouras de cacau do Brasil. A Nestlé é a principal financiadora do problema, via a compra de cacau da Cargill. O caso é grave e foi tratado em uma coluna anterior.
No caso do cacau, a Nestlé precisa agir o quanto antes. Diversas marcas do seu portfólio de chocolates têm trabalho infantil e trabalho escravo na cadeia produtiva. São marcas que fazem parte da nossa vida e da vida das nossas crianças: Prestígio, Suflair, Galak, Chokito, Sensação.
Qual é a sensação de saber que o seu chocolate predileto tem trabalho infantil na cadeia produtiva? A Nestlé é que precisa dar essa resposta.
Será que a direção da empresa, na Suíça, compactua com essa violência? O que o povo da Suíça pensa sobre isso? O que você, consumidora de chocolate, pensa sobre isso?
InPACTO: financiado por empresa do trabalho escravo
Importantes organizações da sociedade civil, criadas para enfrentar trabalho escravo e infantil, seguem em laborioso silêncio quando o assunto é a Nestlé e a Cargill. O caso mais emblemático é o do Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (InPACTO). A organização nasceu em 2014, como proposta de aprimoramento da mais importante iniciativa já criada pela sociedade civil brasileira contra o trabalho escravo: O Pacto Nacional Contra o Trabalho Escravo.
Atualmente, o InPACTO recebe dinheiro das empresas do setor de cacau e chocolate envolvidas em trabalho escravo e infantil, mas se mantém em ruidoso silêncio sobre as referidas empresas. A questão foi abordada em novembro passado.
O InPACTO foi criado por quatro organizações: Organização Internacional do Trabalho, Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, Repórter Brasil e Instituto Observatório Social.
A coluna segue aguardando um posicionamento público e transparente do InPACTO e das organizações que o mantém, sobre trabalho escravo e infantil na cadeia produtiva da Nestlé e da Cargill.
O Pacto Nacional Contra o Trabalho Escravo, lançado em 2005, é a mais importante iniciativa da sociedade civil brasileira contra o trabalho escravo. Quem ajudou a criar essa iniciativa, como este autor, não pode compactuar com o ruidoso silêncio dessa organização, que agora tem o trabalho escravo em sua própria cadeia produtiva, já que recebe dinheiro da Cargill, empresa ligada ao desmatamento e ao trabalho escravo.