Publicado no site da Rede Brasil Atual (RBA)
Do Brasil de Fato
Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato Pernambuco publicada na sexta-feira (10), o médico e neurocientista Miguel Nicolelis, da coordenação da Comitê Científico do Consórcio Nordeste, aponta que a região “ainda não tem como cantar vitória ou achar que a batalha está ganha” no enfrentamento à covid-19.
O nono boletim, recentemente, lançado pelo comitê aponta um “efeito bumerangue”. O crescimento de casos na capital seguiu em direção ao interior e agora há um aumento repentino de casos no interior que retorna para as capitais. O principal fator é a busca por leitos e melhor estrutura para pacientes graves vindos de outras cidades. Confira a entrevista:
Como é o trabalho do Comitê Científico em uma situação como essa de pandemia?
Basicamente o comitê está se reunindo virtualmente. Nós temos representantes dos estados, temos nove sub-comitês formados por cientistas de todo o Brasil, não só do Nordeste. E nós temos também uma plataforma virtual de colaboração de cientistas de toda sorte, de todas as especialidades com mais de 2 mil colaboradores. É uma das maiores, se não a maior do Brasil nesse momento.
Nós coletamos dados, modelos, informações, fazemos análises, gráficos e oferecemos esse material aos governadores de cada estado e também publicamos os nossos boletins periodicamente, para informar a sociedade como um todo do estado da pandemia no Nordeste.
É um trabalho voluntário. Todos nós somos voluntários, ninguém recebe nada e todos basicamente colaboram tentando oferecer as melhores práticas científicas, as melhores soluções encontradas no mundo pra gente implementá-las no Nordeste.
Ciência e coronavírus
Observando o papel que vem tendo o comitê e os resultados que vêm sendo alcançados a partir das ações tomadas com base nas recomendações, como você entende a importância da pesquisa científica no Brasil e de valorizar mais esse tipo de trabalho?
Eu acho que claramente a pandemia trouxe à tona a necessidade de a ciência ser levada mais a sério pelos governos, pelos gestores e pelas sociedades dos países. Em todos os países onde a ciência foi posta em primeiro plano, ela ajudou demais a combaterem a pandemia. Por exemplo, na Alemanha, onde os institutos de pesquisa foram chamados a ajudar o governo alemão e desempenharam um papel central; na Coréia do Sul da mesma forma; a própria China…
A gente vê aqui no Brasil finalmente a sociedade brasileira começando a acordar porque é importante apoiar a ciência, financiar projetos de pesquisa em todo o país, apoiar as universidades federais onde mais de 90% das pesquisas científicas do Brasil são feitas.
Nesse sentido, eu acho que a ciência está correspondendo, oferecendo alternativas, abordagens novas, práticas de sucesso e também contribuindo para várias ações, inclusive a possibilidade de desenvolver uma vacina que melhore essa situação em nível mundial.
Então eu acho que a ciência e, em particular, o nosso comitê está tendo uma repercussão muito grande no Brasil, está sendo ouvido pela sociedade. Infelizmente, o governo federal não tem essa boa prática, de levar em conta os conselhos e a experiência dos cientistas. Mas na região Nordeste nós temos ouvidos que nos ouvem e realizam ações que são baseadas nas recomendações do comitê contra a covid-19 e na prática da ciência de alto nível.
‘Bumerangue’ preocupa
O governo de Pernambuco e alguns estudos da PUC São Paulo apontam que o estado já pode ter passado pelo pico da covid-19, mas a gente vem observando que existe um aumento no número de casos no geral. A que se deve esse aumento?
Eu acho que o primeiro fator é a interiorização do vírus da covid-19 pela malha rodoviária de Pernambuco, que permitiu que tivesse um espalhamento da Grande Recife até as áreas mais do interior. A gente tem várias evidências sugerindo que isso ocorreu ao longo dos últimos meses.
Por exemplo, Caruaru, que provavelmente é um dos grandes destinos do tráfego rodoviário da Grande Recife. É um dos lugares onde a gente observou um crescimento bem grande do número de casos, mas também ao longo da BR-10,1 em direção a Paraíba e Alagoas.
E aí a gente já começa a ver, nas últimas semanas, casos aparecendo no centro do estado e no extremo oeste. Serra Talhada, Petrolina… Houve um espalhamento bem grande da região também de Águas Belas. Em Garanhuns, Palmares, perto de Alagoas, em Água Preta…
A gente começou a ver essa interiorização e, agora, vê a possibilidade de os casos que foram pro interior, à medida em que casos mais graves se desenvolvem, que eles devem voltar para a Grande Recife. As pessoas vão em busca de serviços médicos mais especializados e leitos de UTI. É o chamado “efeito bumerangue”.
Também já está começando a haver uma reabertura econômica e em cada parte do estado está acontecendo em um nível diferente. É possível que a gente chegue a um novo pico da doença?
Sem dúvida. A Universidade de Oxford soltou um relatório, semana passada, mostrando que todas as aberturas do Brasil foram executadas ainda fora dos parâmetros que a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda.
Então, no momento em que isso ocorre, independentemente do grau da abertura, você se expõe ao risco de ter novos casos se desenvolvendo e novos picos aparecendo em diferentes regiões do esestádo.
O Recife colheu bons resultados do lockdown que fez da área metropolitana, da Grande Recife mas, evidentemente, ainda não tem como cantar vitória ou achar que a batalha está ganha. Porque a gente vê, com essa interiorização, o aumento de riscos mesmo para a área metropolitana.
Mesmo em regiões que a gente não fala muito, mas Jaboatão dos Guararapes, por exemplo, eu olho no nosso mapa e vejo um grande número de casos e óbitos e realmente quando você olha na curva, você vê o crescimento que ficou mais lento graças ao lockdown, mas ainda está crescendo.
Providências
Quais são as recomendações pra evitar que o estado atinja um novo pico?
São várias: primeiro, como vários membros do nosso comitê de Pernambuco preconizam, o estado precisa realizar estudos, inquéritos epidemiológicos populacionais pra ter uma noção exata de qual a porcentagem da população que foi exposta ao vírus.
E é preciso criar um programa, que eu acredito que a Fiocruz de Recife teria toda condição de executar. Eles têm todos os técnicos de nível internacional, toda a infraestrutura, todo o conhecimento técnico para fazer vários desses inquéritos a cada 20, 30 dias, que é o preconizado.
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É preciso ter um cuidado também com o espalhamento do vírus pelas rodovias. Barreiras sanitárias, controle do tráfego, testagem das pessoas que vão pro interior, das pessoas que voltam do interior. Isso é muito importante.
Quando houver uma sobrecarga do sistema hospitalar, uma curva de casos ascendente muito séria e com um número de óbitos crescente, como a gente vê em Caruaru, por exemplo, é preciso estabelecer o isolamento social mais rígido, conhecido como lockdown.
E ir de encontro ao vírus, nas casas das pessoas, nos locais de trabalho, para quebrar esta taxa de transmissão. É a única maneira conhecida de você realmente diminuir a reprodução da covid-19, no Nordeste e em qualquer lugar.
O nosso comitê sugeriu a criação do que a gente chamou de “Brigadas Emergenciais de Saúde”, que são grupos de agentes da saúde da família, médicos, enfermeiras que vão casa às casas de das pessoas para ver quem está doente, quem precisa ser isolado, quem precisa ser levado ao hospital ou a uma unidade primária de atendimento.
Então, é uma estratégia montada por vários componentes que precisa ser posta em prática simultaneamente pra gente quebrar esse ciclo vicioso da expansão do vírus da covid-19 no Nordeste.
Nordeste à frente
Como você observa o desempenho do estado de Pernambuco nessas ações de combate ao coronavírus que vêm sendo tomadas desde o mês de março?
Eu acho que o governo de Pernambuco está tentando fazer o que é possível dentro das limitações. Eu só acho importante que essas medidas todas, que o comitê sugeriu, elas sejam postas em prática. Principalmente o controle das estradas, as brigadas, o uso de barreiras sanitárias e também a preocupação com a interiorização e o efeito bumerangue.
Principalmente o “efeito bumerangue”. Ele não tinha sido antecipado antes, ele foi algo que a gente conseguiu medir e descobrir nas últimas semanas. E ele traz uma variável nova, que é esse fluxo de pacientes do interior, em busca de socorro médico na capital, em Recife. Isso pode provocar rapidamente um aumento da demanda de leitos de enfermaria e de UTI.
São basicamente essas as recomendações e também as fronteiras dos estados. Porque, em certo momento, talvez seja importante fazer um controle mais rígido dos casos que saem ou entram, por causa do fluxo muito contínuo.
A região metropolitana de Recife tem fluxos rodoviários dos maiores na região Nordeste, por causa do Aeroporto de Guararapes, por causa da Suape, a conexão com João Pessoa. Tem um trânsito muito grande e existe um transborde de pessoas infectadas tanto para o lado de Alagoas, como para o lado de João Pessoa e vice-versa.
É preciso haver uma ação contínua e a ênfase na abertura econômica ser graduada. Medida não só pelos indicadores econômicos, que é o clássico que todo mundo está fazendo, mas sim por agentes epidemiológicos. Deveria ser dada prioridade total a isso, neste momento, para combater a covid-19 no Nordeste, .
Em relação ao Nordeste como um todo, como você tem observado o desempenho da região levando em conta o consórcio de governadores, em relação a outras regiões do país?
Eu acho que a região Nordeste foi a primeira a criar um comitê científico de combate à covid-19 no Brasil. A empoderar esse comitê, dar autonomia e liberdade pra esse comitê se manifestar e oferecer suas sugestões e recomendações sem nenhum tipo de interferência.
Nós temos feito isso, nós temos exemplo de grandes sucessos. Como o Piauí, que implementou basicamente todas as sugestões feitas pelo comitê e está nesse momento com os melhores índices da pandemia no Nordeste. Nós temos o Maranhão, que realizou várias das ações sugeridas. A Paraíba, que fez um isolamento rígido da grande João Pessoa e conversa conosco continuamente. Temos contato direto com o governador da Bahia, conversei com ele semana passada longamente sobre a situação. Temos representantes de todos estados. Neste momento apenas o Rio Grande do Norte não tem representante.
Nós vemos claramente que os estados que estão seguindo recomendações científicas, sendo chanceladas pelo comitê, estão tendo resultados muito bons em relação à covid-19 no Nordeste. A gente sempre fica torcendo pra que todos os gestores dêem relevância e importância e ouçam essas recomendações.
Mas nós só fazemos recomendações, só fazemos sugestões. Nós não temos nenhum poder operacional e não tomamos nenhum tipo de decisão. Só analisamos o que está acontecendo e qual é o impacto dessas decisões no avanço da pandemia.