Escrito em meados dos anos 70, a obra de Caros Drummond de Andrade O amor natural só foi publicada em 1992, após a morte do poeta. A obra póstuma contém quarenta poemas, que tratam o amor carnal de uma maneira totalmente natural, como diz o título. O amor, para ele “palavra essencial”, só se manifesta em sua amplitude pelo sexo. É por meio do sexo que se pode atingir a plenitude da existência; voltar à origem primitiva; atingir a paz eterna, o repouso merecido, o sagrado, o céu infinito; vencer a morte. O coito é, nas palavras do poeta, “morte de tão vida”.
Sobre seu livro secreto, Drummond chegou a declarar: “São poemas eróticos, que eu tenho guardado, porque há no Brasil – não sei se no mundo –, no momento, uma onda que não é de erotismo. É de pornografia. E eu não gostaria que os meus poemas fossem rotulados de pornográficos. Pelo contrário, eles procuram dignificar, cantar o amor físico, porém sem nenhuma palavra grosseira, sem nenhum palavrão, sem nada que choque a sensibilidade do leitor. É uma coisa de certa elevação”.
Recheado de neologismos, os poemas são suaves e envolventes como toda a sua obra. Com um detalhe: as sugestões aqui são mais explícitas, mais docemente pornográficas:
Sugar e ser sugado pelo amor
Sugar e ser sugado pelo amor
no mesmo instante boca milvalente
o corpo dois em um o gozo pleno
Que não pertence a mim nem te pertence
um gozo de fusão difusa transfusão
o lamber o chupar o ser chupado
no mesmo espasmo
é tudo boca boca boca boca
sessenta e nove vezes boquilíngua.
A língua lambe
A língua lambe as pétalas vermelhas
da rosa pluriaberta; a língua lavra
certo oculto botão, e vai tecendo
lépidas variações de leves ritmos.
E lambe, lambilonga, lambilenta,
a licorina gruta cabeluda,
e, quanto mais lambente, mais ativa,
atinge o céu do céu, entre gemidos,
entre gritos, balidos e rugidos
de leões na floresta, enfurecidos.
A castidade com que abria as coxas
A castidade com que abria as coxas
e reluzia a sua flora brava.
Na mansuetude das ovelhas mochas
e tão estreita, como se alargava.
Ah, coito, coito, morte de tão vida,
sepultura na grama, sem dizeres.
Em minha ardente substância esvaída,
eu não era ninguém e era mil seres
em mim ressuscitados. Era Adão,
primeiro gesto nu ante a primeira
negritude de corpo feminino.
Roupa e tempo jaziam pelo chão.
E nem restava mais o mundo, à beira
dessa moita orvalhada, nem destino.
Mimosa boca errante
Mimosa boca errante
à superfície até achar o ponto
em que te apraz colher o fruto em fogo
que não será comido mas fruído
até se lhe esgotar o sumo cálido
e ele deixar-te, ou o deixares, flácido,
mas rorejando a baba de delícias
que fruto e boca se permitem, dádiva.
Boca mimosa e sábia,
impaciente de sugar e clausurar
inteiro, em ti, o talo rígido
mas varado de gozo ao confinar-se
no limitado espaço que ofereces
a seu volume e jato apaixonados
como podes tornar-te, assim aberta,
recurvo céu infindo e sepultura?
Mimosa boca e santa,
que devagar vais desfolhando a líquida
espuma do prazer em rito mudo,
lenta-lambente-lambilusamente
ligada à forma ereta qual se fossem
a boca o próprio fruto, e o fruto a boca,
oh chega, chega, chega de beber-me,
de matar-me, e, na morte, de viver-me.
Já sei a eternidade: é puro orgasmo.
Sem que eu pedisse, fizeste-me a graça
Sem que eu pedisse, fizeste-me a graça
de magnificar meu membro.
Sem que eu esperasse, ficaste de joelhos
em posição devota.
O que passou não é passado morto.
Para sempre e um dia
o pênis recolhe a piedade osculante de tua boca.
Hoje não estás nem sei onde estarás,
na total impossibilidade de gesto ou comunicação.
Não te vejo não te escuto não te aperto
mas tua boca está presente, adorando.
Adorando.
Nunca pensei ter entre as coxas um deus.
Sob o chuveiro amar
Sob o chuveiro amar, sabão e beijos,
ou na banheira amar, de água vestidos,
amor escorregante, foge, prende-se,
torna a fugir, água nos olhos, bocas,
dança, navegação, mergulho, chuva,
essa espuma nos ventres, a brancura
triangular do sexo — é água, esperma,
é amor se esvaindo, ou nos tornamos fonte?
Sublime puta
Ó tu, sublime puta encanecida,
que me negas favores dispensados
em rubros tempos, quando nossa vida
eram vagina e fálus entrançados,
agora que estás velha e teus pecados
no rosto se revelam, de saída,
agora te recolhes aos selados
desertos da virtude carcomida.
E eu queria tão pouco desses peitos,
da garupa e da bunda que sorria
em alva aparição no canto escuro
Queria teus encantos já desfeitos
re-sentir ao império do mais puro
tesão, e da mais breve fantasia.
No corpo feminino, esse retiro
No corpo feminino, esse retiro
– a doce bunda – é ainda o que prefiro.
A ela, meu mais íntimo suspiro,
pois tanto mais a apalpo quanto a miro.
Que tanto mais a quero, se me firo
em unhas protestantes, e respiro
a brisa dos planetas, no seu giro
lento, violento… Então, se ponho e tiro
a mão em concha – a mão, sábio papiro,
iluminando o gozo, qual lampiro,
ou se, dessedentado, já me estiro,
me penso, me restauro, me confiro,
o sentimento da morte eis que o adquiro:
de rola, a bunda torna-se vampiro.
A bunda, que engraçada
A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.
Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora – murmura a bunda – esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.
A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.
A bunda se diverte
Por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
Avolumam-se, descem. Ondas batendo
Numa praia infinita.
Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
Na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.
A bunda é a bunda,
Redunda.