Da página da ex-presidenta Dilma:
A ex-presidenta Dilma Rousseff participou ontem, como convidada de honra, da cerimônia que celebrou os 700 anos de fundação da Cidade do México, cujo nome original é Tenochtitlán, os 500 anos de resistência indígena à ocupação colonial e os 200 anos da independência do país em relação à Espanha.
Dilma ressaltou que a solenidade promovida pelos mexicanos inverteu a narrativa tradicional, que costuma privilegiar os colonizadores. “Há um provérbio africano que Eduardo Galeano lembra e sempre achei fascinante: até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caça continuarão a glorificar o caçador”.
Dilma disse que “a história da América quase sempre foi narrada por caçadores, silenciando, escondendo, negando as histórias de vida dos nossos povos indígenas, das nossas civilizações ancestrais, da nossa imensa riqueza e diversidade cultural.”
A ex-presidenta citou o cronista mexicano Carlos Monsivais: “Se a batalha cultural não acontecer, a batalha política pode estar perdida”. E afirmou: “Chego a um México que está renascendo, construindo uma cultura de igualdade, soberania e dignidade.” Dilma disse que “esta festa oferece-nos um outro olhar. Uma perspectiva que respeita a verdadeira história da humanidade.”
Eis a íntegra do discurso da ex-presidenta Dilma Rousseff na Cidade do México:
Senhoras e senhores, chefes de poder, deputados e senadores, mexicanos e mexicanas.
Senhor Presidente, Andrés Manuel López Obrador, volto ao México com a imensa alegria de redescobrir um país cujo governo está construindo um horizonte de justiça social e igualdade para seu povo. Um povo que encontra no seu governo a força do compromisso de efetivas conquistas e que se destaca diante de um passado com tantas promessas de bem-estar não cumpridas, diante de tantas riquezas energéticas expropriadas, diante de tantas dívidas democráticas e de justiça adiadas.
O México sempre foi uma nação inspiradora para os progressistas do mundo. Um país aberto e generoso, um território acolhedor onde se refugiaram tantos artistas, intelectuais, militantes e dirigentes de esquerda e do progressismo europeu e latino-americano. Aqui brasileiros, argentinos, chilenos e uruguaios construíram suas casas, fugindo das brutais ditaduras que assolaram nossos países nas décadas de 60 e 70.
Um México que sempre manteve uma relação ativa e aberta com Cuba, mesmo quando, sob a tutela norte-americana, quase todas as nações latino-americanas lhe deram as costas.
Hoje seu governo, senhor presidente, está construindo um México democrático e diverso, justo e aberto. Um governo que expressa o grito de dignidade e igualdade de um povo que exige que as elites e todos os poderes deixem de expropriar seus direitos, seu patrimônio e sua felicidade.
Senhor Presidente Andrés Manuel, acompanho com grande atenção e solidariedade sua luta contra a desigualdade e a injustiça social. Seu árduo compromisso de conquistar a soberania energética e alimentar do México. Você disse claramente: “O México não é mais uma terra a ser conquistada.”
Quem lidera ou já liderou governos democráticos populares e progressistas sabe que além de nossos esforços para transformar as políticas públicas, democratizar o Estado, banir os privilégios das oligarquias e garantir os direitos das maiorias, deve contribuir para a construção de uma nova cultura política democrática em nossas nações, marcada pela violência e autoritarismo.
Como afirmou certa vez o grande cronista mexicano Carlos Monsivais: “se a batalha cultural não acontecer, a batalha política pode estar perdida”.
Chego a um México que está renascendo, construindo uma cultura de igualdade, soberania e dignidade.
Participo dessas celebrações sentindo uma honra muito especial. Há um provérbio africano que Eduardo Galeano lembra e sempre achei fascinante: “até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caça continuarão a glorificar o caçador”.
A história da América quase sempre foi narrada por caçadores, silenciando, escondendo, negando as histórias de vida dos nossos povos indígenas, das nossas civilizações ancestrais, da nossa imensa riqueza e diversidade cultural, que antes da chegada dos espanhóis e portugueses habitavam um território que a arrogância colonial quis nos convencer de que foi descoberto há mais de 500 anos.
Esta festa para a qual nos convidou oferece-nos um outro olhar. Uma perspectiva que respeita a verdadeira história da humanidade.
A história da Cidade do México é reconhecida naquele feito fundador cujos sete séculos celebramos hoje. Lá, quando o Mexica se estabeleceu em uma ilhota no Lago Texcoco, começando a construir a gloriosa civilização sobre a qual uma das cidades mais deslumbrantes da história da humanidade foi construída: o México Tenochtitlan.
Talvez se possa pensar que a Cidade do México foi fundada sobre as ruínas do México – Tenochtitlan. Estou convencida de que foi fundada em seu esplendor, em sua grandeza. Sobre vidas, vozes, diversidade, cultura. Sobre a história que ainda resiste e existe em cada um dos cantos de uma cidade e se torna legível no presente e no futuro desta fascinante metrópole.
Aqui revivo, junto com vocês, o sentimento que nos une como latino-americanos: fazer parte de uma história que nenhum caçador pode silenciar. A história não só dos leões. A história também das leoas.
E já que falo das leoas, permita-me cumprimentar a chefe do governo da Cidade do México, Claudia Scheinbaun Pardo, e dizer que minha alegria de estar aqui hoje é redobrada pelo fato de esta extraordinária cidade ser governada por uma mulher.
Espero que você obtenha a merecida nomeação como “melhor prefeita do mundo” por seu trabalho em face da pandemia COVID-19. Seria um reconhecimento da excelente gestão que desempenha e também de tantas mulheres que, como você, fazem da política um exercício de dignidade, de luta pelo direito à cidade, da ética e do compromisso público.
Todas as mulheres que se dedicam à política sabem que enfrentamos não só o desafio que nos é imposto pela concepção de políticas públicas em cenários de enormes desigualdades e injustiças sociais, mas também um machismo que corrói os alicerces das nossas democracias.
Sofri a pressão das elites e dos poderes que desestabilizaram um governo eleito democraticamente pelo povo brasileiro. Sofri um golpe que violou o estado democrático de direito e usurpou a soberania popular. Sofri porque fui chefe de um governo que representou um projeto que construiu oportunidades e direitos para milhões de cidadãos esquecidos, abandonados, desprezados pelos poderes e oligarquias que quase sempre governaram meu país e que hoje voltam a governá-lo. Se o motivo foi o projeto de transformação que representei, o contexto era misógino. Foi assim que sofri também por ser mulher: a primeira mulher presidente do meu país.
Eu sofri, mas também Cristina Kirchner, Michelle Bachelet e tantas mulheres progressistas que lideram projetos políticos populares na América Latina e no mundo. A misoginia invade a política e é um dos obstáculos autoritários que continuam a nos fazer retroceder e declinar em nossas frágeis e instáveis democracias.
Acompanhá-la nesta tríplice celebração, Senhora Chefe do Governo da Cidade do México, é também minha forma de homenagear todas as mulheres que lutam dia após dia para tornar nossas sociedades mais igualitárias, humanas e justas.
Celebramos os sete séculos do México-Tenochtitlan, os 500 anos de resistência indígena e os 200 anos da independência mexicana.
“Resistência” e “independência” são duas palavras carregadas de significado emancipatório.
Fiquei extremamente animada em compartilhar com vocês que, neste México que vive um momento de oportunidades democráticas excepcionais, com este grande presidente, Andrés Manuel López Obrador, as epopeias de resistência e independência não são pensadas como um momento, como um aniversário ou como um fato do passado, mas como um processo que se traduz no presente e se projeta no futuro.
Estamos aqui em uma celebração da memória, da memória coletiva, da memória viva, que sempre vive e resiste nas lutas do povo. Essas três celebrações mexicanas são uma alegação à memória coletiva das lutas pela emancipação em nossa América.
Prezado Presidente Andrés Manuel López Obrador, querida Chefe de Governo Claudia Sheinbaum, venho de um país que hoje se encontra submerso em uma crise sem precedentes. Onde a pandemia já custou mais de 420 mil vidas. Com um presidente fascista, autoritário, racista, misógino, xenófobo, que despreza a vida de seu povo, que impõe a destruição e expropriação sistemática de bens públicos, direitos humanos e instituições democráticas.
Mas também venho de um país que continua a resistir à barbárie. Um país com um povo combativo, solidário e generoso que muito em breve se livrará desta casta de políticos indolentes e corruptos, restaurando a soberania que tentaram roubar dele.
Trago aqui o abraço fraterno do meu povo, do meu partido e do ex-presidente Lula ao povo mexicano.
Aqui na Cidade do México, o Monumento da Independência é um anjo. Eu sei que simboliza os pais do país. Mas acho que também representa as mães, as meninas, os trabalhadores deste país. Aos que fizeram do México esta nação extraordinária, diversa, plural, criativa e redentora.
Aos anjos silenciosos, a que Elena Poniatowska se referiu em “Anjos da Cidade”, aqueles que construíram e estão construindo sua independência dia após dia. Ao povo mexicano, às leoas e aos leões que sempre foram silenciados nas histórias de caça.
Esse é o México que celebramos aqui. O México de uma das civilizações mais importantes e antigas, o México anti-racista e anti-patriarcal. O México da revolução e emancipação. O México de todas as mulheres e homens mexicanos.
Hoje, tenho a honra de estar aqui celebrando com o Sr. Presidente Andrés Manuel Lopes Obrador, com a Chefe de Governo da Cidade do México Claudia Sheinbaum Pardo, com todos vocês e com todos os mexicanos e mexicanas a grande história do México. E a cada dia, continuaremos lutando junto com os anjos do continente, para construir uma América Latina unida, construída sobre a justiça, a igualdade, a dignidade e a independência que nossos povos merecem.
Obrigada.