Publicado originalmente na La Vie.
Será que o Vaticano e as outras autoridades religiosas vão conceder um prêmio especial na próxima cerimônia do Oscar, uma estatueta para recompensar a melhor adaptação da Bíblia? Tudo acontece como se os roteiristas deHollywood, na falta de super-heróis, encontrassem no Antigo e no Novo Testamento material para fabulosas histórias.
Assim, para restringir-se às produções mais espetaculares, Russell Crowe salva a humanidade do dilúvio em “Noé”, de Darren Aronofsky, e, um pouco antes do Natal, Christian Bale libertará o povo judeu da escravidão em “Êxodo”, de Ridley Scott. Em 2015, o fervor não deverá diminuir, pois são anunciados um filme sobre a vida da Virgem Maria (“Mary”, de Alister Grierson), outro sobre Moisés, assinado por Ang Lee (“Gods and Kings”) e um sobre Abel e Caim versão vampiros! (“The Redemption of Cain”, com Will Smith).
Um retorno à tradição
Devemos ler nesse movimento os sinais de um impulso espiritual ou simplesmente o retorno a uma tradição tão antiga quanto a sétima arte? “As adaptações da Bíblia são um dos grandes gêneros do cinema”, lembra Aronofsky. Um gênero que podemos ligar ao ‘peplo’ [subgênero de filme épico, originário da Itália], e que floresceu na época do cinema mudo, tanto na Europa como nos Estados Unidos. Mas que diminuiu nos anos 1920. Por falta de dinheiro, os estúdios deixaram de fazer esses filmes com orçamentos faraônicos. O peplo conheceu uma segunda era de ouro durante os anos 1950 e 1960, quando os espetáculos coloridos de “10 Mandamentos”, “Quo Vadis” ou “Ben Hur” (indicado para 11 Oscar) fizeram vibrar as multidões.
Depois, foi preciso esperar o sucesso de “Gladiador”, em 2000, para que a Antiguidade retornasse verdadeiramente a Hollywood. Seguido, em 2004, por “A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson que, inesperadamente, arrecadou 370 milhões de dólares em bilheteria. O que faz os produtores, inicialmente relutantes, refletirem. Milagre! Existe um mercado para os filmes bíblicos. E aí se encontra o sésamo, o meio infalível de abrir todas as portas, dos mercadores do Templo, do outro lado do Atlântico e em outros lugares. “Durante anos, Hollywood não se esforçou para atingir os grupos particulares como os feministas ou os ecologistas. E acontece que os Estados Unidos contam com 91 milhões de evangélicos”, destaca de maneira irônica Phil Cook, consultor de organizações cristãs, no The Telegraph.
O apoio das igrejas evangélicas
De fato, “Son of God”, filme baseado na série de televisão A Bíblia (que cravou 11 milhões de espectadores diante das telas da cadeia americana History), fez uma estreia estrondosa nos Estados Unidos. Apesar das críticas mornas, alcançou, no fim de semana de lançamento, no começo de março, o segundo lugar, com 25 milhões de dólares em bilheteria nas 3.200 salas.
As igrejas evangélicas contribuíram amplamente para esse sucesso, comprando em massa bilhetes e reservando salas inteiras. E esse apoio marca uma mudança em relação aos anos 1950-60. “Durante muito tempo apáticas ao cinema, essas igrejas passaram a produzir filmes, paralelamente ao circuito dos estúdios, nota o pastor e cinéfilo Jean-Luc Gadreau. E estes conheceram uma bela carreira, saindo muitas vezes diretamente em DVD”.
Este novo nicho para o marketing hollywoodiano já foi claramente identificado no verão passado com a estreia do filmeHomem de Aço (nova versão de Superman, do diretor Zack Snyder), através de uma campanha junto aos cristãos que destacava o paralelo entre o super-herói e Jesus.
Uma mudança técnica
Se o público responde é porque há uma outra mudança que veio da técnica. “Com os efeitos especiais você pode representar de maneira totalmente realista os milagres da Bíblia. Você pode abrir o Mar Vermelho ou fazer cair o dilúvio, cenas até agora impossíveis de se realizar”, destaca Darren Aronofsky.
O cineasta recusa da sua parte a ideia de uma “onda” bíblica, e vê antes no lançamento no mesmo ano de Noé e Êxodouma “coincidência”: “Eu queria fazer este filme desde a época do meu primeiro longa metragem Pi, em 1998”. Mas sua paixão pela salvação da humanidade é bem mais antiga. Aos 13 anos, o cineasta, que cresceu numa família judia deNova York, escreveu um poema sobre Noé. “Com aquela idade eu já me interessava pelo pecado e pela luta no coração de cada ser humano entre o bem e o mal. E meu filme não faz nada além dessa escolha”.
Fortes ideologias
No entanto, o filme fez saltar ao tatame alguns cristãos, inquietos com o conteúdo. Estamos longe das brigas de “A Última Tentação de Cristo”, de Scorsese, em 1988! “Na época, tratava-se da figura de Jesus. Em “Noé”, tudo é maravilhoso!”, destaca o cineasta, surpreso com a desconfiança que seu filme suscitou. De fato, “esta propensão à polêmica é inédita”, comenta Claude Aziza, historiador da Antiguidade e de suas representações, autor de “Péplum, un mauvais genre”. Sem dúvida, porque durante muito tempo os cineastas, como Cecil B. DeMille, prudentemente trataram a Bíblia como “um repertório de belas histórias”. Mesmo “Sodoma e Gomorra”, de Robert Aldrich, em 1962, foi uma “adaptação para crianças”, ironiza o historiador.
Portanto, para quem se dá o tempo de decodificá-los, esses filmes “eram carregados de uma forte ideologia”. “No tempo do cinema mudo, a Bíblia era utilizada para edificar os espectadores, denunciar os costumes julgados depravados na época. As cenas antigas se misturam com cenas contemporâneas. “Em Intolerância” (1916), Griffith injeta em um episódio moderno muitos acontecimentos históricos, entre os quais se encontra a Paixão de Cristo. Por outro lado, nos anos 1950-60, tendo como pano de fundo o peplo, você encontra o conflito israelo-árabe”.
Darren Aronofsky tem sido recriminado por retratar um Noé ecologista pessimista. Ele diz ser fiel ao texto: “Não está escrito no Gênesis que o homem tem por missão cultivar e guardar o jardim do Éden, e o Papa Francisco não nos lembrou que somos os guardiões da criação?” Mais ainda, o diretor de “Cisne Negro” lembra que “toda obra de arte é uma interpretação”. “As pinturas representaram comumente a arca como um barco em forma de casa. Ora, a Bíblia a descreve com precisão como um paralelepípedo, e foi assim que nós a filmamos”.
O cineasta insiste na “força metafórica do texto, assim como qualquer relato mitológico”. “Esta história, intimamente ligada à nossa condição humana, pode nos inspirar”. Ele reivindica sua parte de licença poética. Sobretudo porque as aventuras de Noé dizem mais respeito à novela do que ao romance: apenas algumas páginas se referenciam no Gênesis.