Publicado no Conjur.
POR LENIO STRECK, jurista e professor
— Quando eu uso uma palavra, – Humpty Dumpty disse com certo desprezo – ela significa o que eu quiser que ela signifique… nem mais nem menos.
— A questão é – disse Alice – se você pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes.
— A questão é – disse Humpty Dumpty – quem será o chefe… e eis tudo.
Inicio esta coluna com Humpty Dumpty, de Through the Looking Glass (Alice Através do Espelho) porque ele é o melhor exemplo do que faz o sujeito solipsista. O sujeito solipsista é o Selbstsüchtiger, ou viciado em si mesmo. É aquele que se coloca na contramão dos constrangimentos cotidianos: isto é, ignorando que o dia a dia nos ensina que não se pode estabelecer sentidos arbitrários às palavras, ele pensa que pode e assim o faz, pois dá às palavras o sentido que quer. A colocação de Alice é genial, e representa exatamente o que a intersubjetividade nos impõe: você não pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes. Mas Humpty Dumpty é certeiro: será que não? Nem mesmo quem manda? Humpty Dumpty, e perdoem meu pessimismo, não deixa de ter certa razão. Não por menos, e não é de agora, venho dizendo, e repetindo, que o Direito vive tempos obscuros. Infelizmente, a realidade insiste em dizer que estou certo.
Nos últimos dias, tivemos juízes, não contentes em fazer juízos morais (!), fazendo juízos estéticos (!!) (ver aqui); decidindo favoravelmente à possibilidade de tratamento voluntário de homossexuais (foi chamado de “cura gay” pela imprensa [sic] ver aqui); e dizendo que espancar e cortar os cabelos da filha é “medida corretiva” (ver aqui). Não entremos nos detalhes de cada um desses casos. Não é necessário. O ponto é que se o juiz acha que é possível exemplar a filha, fazer juízos acerca da possibilidade de tratamento da homossexualidade e censurar obras de arte, eis aqui os exemplos do solipsismo judicial e seus adeptos.
O juiz dá às palavras o sentido que quer porque ele é, como Humpty Dumpty diz, o chefe. Ele está decidindo a partir de um lugar de fala amparado pela institucionalidade, que tem o papel da concha de Ralph, de Lord of the Flies (O Senhor das Moscas). Mas com uma diferença: não agem como Ralph, personagem através do qual William Golding genialmente representava a democracia e a civilização; agem como Jack Merridew, o garoto que representava a cessão aos próprios instintos e à sede de poder. E quando a intersubjetividade não é capaz de conter a barbárie interior desse sujeito, “a questão […] é quem será o chefe… e eis tudo”. O juiz solipsista é o triunfo de Humpty Dumpty.
A prova disso é que só se pode dizer qualquer-coisa-sobre-qualquer-coisa… no Direito. Os autos de um processo, o Foro, o Tribunal — são esses os únicos lugares nos quais, aparentemente, é “permitido” que se troque o significado dos significantes. Fora daí, experimente dizer que um ônibus é uma bicicleta. Tente escolher o vinho mais cobiçado da carta e dizer, ao pagar a conta, que aquilo na verdade era uma água de R$ 3. Isso não existe porque a linguagem pública constrange, e quem lutar contra isso será chamado de louco. Ao que parece, porém, o delírio de um indivíduo é psicose; um delírio coletivo são as decisões judiciais solipsistas, chanceladas pela autoridade.
O juiz que i) autoriza — liminarmente (qual seria a urgência da liberação?) — que psicólogos ofereçam tratamento para quem se sente desconfortável como gay[1] (vejam: estou tentando dizer isso de modo bem politicamente correto — li várias vezes a decisão), ii) o juiz que fundamenta decisão sobre proibição de peça teatral com base em “mau gosto”, iii) o juiz que caracteriza espancar a filha com um fio elétrico como “exercício regular de um direito” … são exemplos de como atua o sujeito solipsista, o Selbstsüchtiger. O mesmo ocorre quando prende por prender, solta por soltar, ignora dispositivos de lei e da CF, concede metade da herança para amante, atribui meses de licença conforme ele julga mais apropriado, rejeita embargos alegando livre convencimento, etc; age exatamente como solipsista (ainda que não se dê conta, é claro).
Portanto, se alguém ainda não havia entendido os motivos pelos quais venho pregando por um “constrangimento epistemológico” no Direito (ver verbete específico no meu Dicionário) e os motivos de nos insurgirmos em face de decisões que erram quando a integridade do Direito aponta para outra direção, penso que esses casos mais chocantes podem vir a servir de exemplo do porquê de não se poder ter discricionariedade ou “livre convencimento”. A doutrina, em vez de se preocupar em fazer enunciados, bem que poderia se preocupar com essa coisa “prosaica”: “constranger” epistemicamente para que o judiciário… cumpra a lei e a Constituição Federal. Simples assim. Ou é pedir muito?
“Mas ele é juiz, conhece as leis”. Evidente que sim. Mas reconhecer as leis é outra coisa, e decidir, com caráter de autoridade, acima do que a lei impõe, não é uma forma de mostrar poder? E qual fetiche é maior que esse? O juiz solipsista sabe que a integridade do Direito o constrange; mas como “viciado em si mesmo”, ignora o constrangimento epistemológico em favor da discricionariedade. Opta por uma verdadeira Verleugnung (usualmente traduzida como negação ou rejeição) jurídica. Je sais bien, mais quand même— ou “eu sei, mas mesmo assim…”. O juiz sabe que a lei existe… mas mesmo assim… A saída perversa para se defender da angústia da castração é a válvula de escape do sujeito solipsista em face do constrangimento que a linguagem pública lhe impõe.
Se a gravidade disso ainda não estava suficientemente clara, eis o solipsismo judicial em três modelos: moralismo artístico, moralismo sexual e moralismo familiar.
De todo modo, a) se é possível autorizar que psicólogos tratem da (re)orientação de homossexuais, b) se é possível dar palpite sobre estética e dizer o que é bom ou mau gosto,[2] e c) se é possível ao juiz até determinar o modo como um pai deve fazer para “curar” a rebeldia de sua filha (surrando-a), permito-me uma ironia: por que não apelar ao CNJ para que autorize a cura de solipsismos judiciais desse jaez? Afinal, se a tradução correta de solipsismo é “viciado em si mesmo”, vícios devem ter cura, pois não? Se não autorizar, poderia dizer “que não está proibida a reorientação epistêmica…”.
Nota: para quem quiser saber mais detalhes sobre o conceito de solipsismo, o termo é um dos 40 temas analisados em meu Dicionário de Hermenêutica — 40 temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito (ver aqui). Além do que está dito no início da coluna, vai uma palhinha: É o sujeito que assujeita o mundo conforme o seu ponto de vista interior. É, pois, o resultado do sujeito da modernidade, concebido no seio desse paradigma que tem na subjetividade do homem o ponto último de fundamentação para todo o conhecimento possível. É como o canário de Machado de Assis, em Ideias do Canário, para quem o mundo é somente aquilo que ele privadamente diz que é; o resto é mentira e ilusão. E o que mais é necessário senão os três exemplos desta coluna para explicitar a relação umbilical entre solipsismo, voluntarismo, relativismo e subjetivismo?
[1] Antes que alguém venha a dizer que não li a decisão e que não a entendi, ajudo: Na decisão, o juiz diz que “a melhor hermenêutica [sic] a ser conferida [à] resolução deve ser aquela no sentido de não privar o psicólogo de estudar ou atender àqueles que, voluntariamente, venham em busca de orientação acerca de sua sexualidade“. Além da “melhor hermenêutica” (sic), outro ponto que me saltou aos olhos na decisão é a utilização, por parte do Juiz, do termo “(re) orientação sexual“, dizendo que “censurar” estudos relacionados a isso é “proibir […] a liberdade científica“. Ou seja, o Magistrado não fala, claro, em “cura gay”, ipsis litteris, mas fala claramente que a melhor hermenêutica [sic] estabelece que recomendações contrárias a estudos acerca da (re) orientação sexual [sic] é proibição da liberdade científica.
[2] O juiz caracterizou a peça teatral como um “ato desrespeitoso” e de “extremo mau gosto” (sic). Não sabia que o juiz era crítico de arte.