“Então aqui estou, de cabeça para baixo, dentro de uma mulher. Braços cruzados pacientemente, esperando, esperando e me perguntando dentro de quem estou, o que me aguarda. Meus olhos se fecham com nostalgia quando lembro como vaguei antes em meu diáfano invólucro corporal, como flutuei sonhadoramente na bolha de meus pensamentos num oceano particular, dando cambalhotas em câmera lenta, colidindo de leve contra os limites transparentes do meu local de confinamento.”
Assim se inicia o novo romance do escritor inglês Ian McEwan, Enclausurado (Nutshell, no original). Inovador em sua narrativa, Enclausurado (Companhia das Letras, 200 páginas, tradução de Jorio Dauster) é protagonizado por um feto de nove meses. O bebê, um irônico apreciador de vinho, informa-se acerca do mundo através de programas de rádio que sua mãe ouve e acompanha, vertiginosamente, o plano fatal da mesma, junto ao amante (que é também seu cunhado), de assassinar o marido.
O leitor percebe apenas o que o bebê consegue ouvir, em meio aos ruídos corporais da mãe: sussurros, algumas falas entrecortadas; a mãe, Trudy, e seu amante, Claude, parecem ter cautela ao tramar o crime, que a princípio nos parece nebuloso, “como se ambos suspeitassem de que úteros têm ouvidos”.
A partir do que ouve e dos movimentos que sente, o feto-narrador tira suas conclusões, por vezes precipitadas, alternadas com devaneios sobre o mundo que está prestes a recebê-lo, o futuro que o aguarda, em meio a catástrofes e tragédias, numa incontestável crítica aos rumos que a humanidade tem tomado (“A confusão sobre valores, a incubação do bacilo do antissemitismo, os contingentes de imigrantes apodrecendo por falta do que fazer, enfurecidos e entediados (…) novas desigualdades de riqueza, os super-ricos uma raça de donos do mundo à parte. A engenhosidade demonstrada pelas nações para desenvolver armamentos novos e brilhantes, das corporações multinacionais para evitar impostos, dos bancos que se dizem honestos para se entupir de dinheiro”).
Enclausurado é notadamente baseado em Hamlet, de Shakespeare, que Ian McEwan cita em sua epígrafe (“Deus, eu poderia viver enclausurado dentro de uma noz e me consideraria um rei do espaço infinito – não fosse pelos meus sonhos ruins”): na trama original, Hamlet, príncipe da Dinamarca, busca vingar a morte do pai, assassinado pelo tio Claudio (Claude, no romance) para se casar com a cunhada Gertrudes (Trudy). Em Enclausurado, contudo, resta ao bebê permanecer impassível, incapaz de interferir no desenrolar da história – salvo alguns pontapés que tenta dar em sua mãe em momentos cruciais.
Mesmo o célebre to be or not to be pode ser aplicado aqui ao nosso feto: ainda não tem nome, não existe neste mundo, contudo vive; vive, ainda que enclausurado em um útero, onde dá vazão a seus pensamentos, destinado a uma binaridade determinista após o nascimento (“Dois sexos apenas. Fiquei desapontado. Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, por que limitar o espectro de possibilidades?”).
Ian McEwan é um dos escritores mais importantes da atualidade. É dele o belo romance Reparação (Atonement), de 2001, adaptado para os cinemas com o título de Desejo e reparação, indicado ao Oscar de melhor filme em 2007. McEwan foi nomeado para o Booker Prize seis vezes, sendo laureado com o prêmio pelo romance Amsterdam em 1998. O escritor também é famoso por suas declarações políticas contra o fundamentalismo islâmico.
Em entrevista ao The Wall Street Journal, o autor explicou que a ideia de um narrador incomum para o seu romance surgiu de uma conversa com sua enteada grávida. “Estávamos conversando sobre o bebê, e eu estava bem consciente da presença dele no quarto”, declarou. Após algumas notas, a primeira frase do livro estalou em sua cabeça: “então aqui estou, de cabeça para baixo, dentro de uma mulher”.
Alguns artistas são capazes de se reinventar continuadamente, em vez de viver à sombra de obras anteriores. Com Enclausurado, McEwan demonstra que não é preciso ir muito longe nem criar histórias mirabolantes para se fazer literatura: mesmo dentro de um útero, sozinho e isolado, há todo um universo a ser explorado, como o próprio bebê nos deixa claro: “Estar circunscrito a uma casca de noz, ver o mundo em cinco centímetros de marfim, num grão de areia. Por que não, quando toda a literatura, toda a arte e a iniciativa humana não passam de uma partícula no universo das coisas possíveis? E mesmo esse universo pode ser uma partícula numa infinidade de universos reais ou possíveis?”