Falei outro dia em Lacerda, Carlos Lacerda, o jornalista e político que inventou no Brasil o ódio, o veneno e a calúnia como armas no jogo político.
Quando os votos não bastaram, Lacerda usou o grito. Quando o grito não bastou, Lacerda usou o exército. Como nem sempre o mal prevalece, ele acabou sendo vítima do golpe militar em que foi tão importante em 1964. Lacerda contava que os generais, derrubado João Goulart e destruída a esquerda, abririam caminho para ele.
Mas os militares gostaram do poder, e os sonhos presidenciais de Lacerda morreram e, com eles, não muito depois, o próprio Lacerda. Os militares foram uma calamidade – mataram, promoveram uma monstruosa concentração de renda, liquidaram a educação pública (um dos mais eficazes instrumentos de mobilidade social) e alinharam abjetamente o Brasil aos interesses americanos.
Tudo isso, na visão de Lacerda, não foi nada comparado ao fato de os militares terem ceifado suas ambições presidenciais. De Lacerda, restou um legado destrutivo, um capítulo sombrio na história do Brasil.
Mas o que eu quero destacar aqui é o anti-Lacerda: Fernando Henrique Cardoso. FHC sempre fez política do jeito contrário ao consagrado por Lacerda. Em vez de insultos, argumentos. Em vez de gritos, a voz num tom moderado. Em vez de conspirações para derrubar presidentes eleitos, pregações para conquistar corações e mentes e, com isso, mudar o país pelo voto.
FHC teve que sair do Brasil depois do golpe militar. Primeiro foi para o Chile, e depois para a França. Quando o céu ficou menos ameaçador, retornou e ingressou na política, primeiro no PMDB e depois no PSDB, de que ele foi desde o início o cérebro.
A vitória que obteve contra a inflação quando foi ministro da economia de Itamar Franco o guindou para a presidência. O Brasil de FHC deixou de ser uma piada econômica para o mundo exterior depois de anos de planos mirabolantes antiinflacionários que só conseguiam elevar ainda mais a inflação.
Sob FHC, se deu a primeira grande transferência de dinheiro para os pobres. Eram eles as principais vítimas da inflação. Os ricos e a classe média tinham como se proteger com produtos oferecidos pelos bancos – os maiores beneficiários.
Foi o primeiro choque de redistribuição do bolo. O segundo viria com Lula e seus programas sociais, tão combatidos pelo neolacerdismo estrategicamente abrigado em colunas de revistas e jornais.
FHC, na oposição, jamais cedeu ao lacerdismo. É um homem sábio o suficiente para entender onde vão dar as coisas quando o lacerdismo triunfa. É um ponto alto em sua biografia a profilática distância que manteve daqueles que, no auge da chamada crise do Mensalão, tentaram derrubar Lula.
Para o PSDB, e para o Brasil, foi uma pena que à era FHC se seguisse a era Serra. Serra, na campanha presidencial de 2002, já mostrou que nada tinha a ver com FHC: manteve-o longe dos palanques, procurou se dissociar da imagem dele – bem, e deu no que deu.
A tomada de poder de Serra no PSDB acabou transformando o partido num bastião dos interesses do próprio Serra. O PSDB, com os anos, foi como que perdendo o sentido. Para quem ele fala, no sul em que foi sempre tão forte, exceto para um pedaço crescentemente minoritário da classe média antinordestina?
O florescimento do PSDB está associado a FHC. O esvaziamento, a Serra. Alijado do partido que levou à presidência, FHC continuou a se comportar de maneira exemplar. Jamais se queixou publicamente do ostracismo a que foi empurrado por Serra.
Aos 80 anos, não tem mais o vigor necessário para reconstruir o PSDB, para lhe dar as bandeiras e as causas que foram sumindo à medida que Serra foi tomando tudo. Se estivesse na ativa, provavelmente estaria estudando a maneira de reconectar seu partido com o presente, com o zeitgeist, o espírito do tempo — que hoje se traduz no imenso desconforto planetário com a superriqueza de poucos e a pobreza de tantos.
Mas há um tempo para trabalhar e um tempo para repousar, como ensina a sabedoria milenar do Eclesiastes. Por isso não deve ser criticado em sua merecida aposentadoria o anti-Lacerda, FHC, um grande brasileiro vivo e um dos maiores da história nacional.