Elegi “não existe morte política no Brasil” como minha lenda urbana predileta, ultrapassando com folga o manjado “não existe racismo no Brasil.”
Há muito mais coisas na realidade geopolítica do que supõe a nossa vã filosofia, e ela é, de fato, tão sombria quanto parece ser: tão sombria quanto Alexandre de Moraes com olheiras e capa preta, tão sombria quanto as mãos vampirescas do presidente, quanto um Ministro morto num misterioso acidente de avião e uma vereadora executada em plena intervenção federal no Rio de Janeiro.
A morte política nunca deixou de existir no Brasil (e no mundo, vide os ex-expiões ingleses envenenados): só havia tornado mais sofisticadas as suas formas no período pós-ditadura. Nesse início de século, entretanto, torna a escancarar-se: as mortes de Eduardo Campos, Teori Zavascki, e, agora, de Marielle, são apenas uma pequena amostra do horror de House of Brasil, que está, cada vez mais, ao alcance de nossos olhos.
Marielle Franco, vereadora do PSOL, foi morta ontem, no Rio de Janeiro, e todas as circunstâncias do crime apontam para a execução (perseguição e nenhum objeto roubado), razão pela qual é essa a principal linha de investigação da polícia.
Coincidência ou não, ela havia postado em uma rede social um apelo pelo fim da guerra urbana na favela de Acari: “O que está acontecendo agora em Acari é um absurdo! E acontece desde sempre! O 41° batalhão da PM é conhecido como Batalhão da morte. CHEGA de esculachar a população! CHEGA de matarem nossos jovens.”
A situação dos moradores de Acari não é novidade pra mim. No ano passado conheci uma escritora moradora da favela, muito respeitada pela comunidade, para desempenharmos um trabalho juntas – não direi seu nome, por razões óbvias – e ela me contou com muita naturalidade do último “esculacho” que levara da polícia.
“Eles me mandaram entrar no carro, passaram os meus dedos nos gatilhos das armas deles – se qualquer coisa acontecesse, teria pólvora na minha mão – e me ameaçaram de morte pra eu sair da favela.”
O crime dela? O mesmo de Marielle: Ousar exercer sua liberdade de expressão na favela onde nasceu, e bater de frente com a polícia para defender os seus – não porque gosta disso, mas porque não há alternativa.
É preciso encarar perseguições e mortes políticas como reais, especialmente em um país onde a democracia é uma farsa.
A morte de Marielle Franco é mais um aviso quanto ao óbvio – e uma bela oportunidade de voltarmos os olhos para Acari.