O avanço da privatização da água no Brasil do governo Collor até Bolsonaro

Atualizado em 24 de junho de 2020 às 17:56
Fernando Collor e Jair Bolsonaro. Foto: Wikimedia Commons

Publicado no Instituto Humanista Unisinos

“É fato que a água sempre foi privatizada de alguma forma no Brasil, mas o que nós estamos a testemunhar neste momento é a mudança da relação entre o Estado brasileiro com a sua água, colocando em perigo a sua própria soberania, já que a transferência do controle dos reservatórios para companhias privadas trará novas configurações sobre as formas de apropriação da mesma. Posto que toda a cadeia produtiva necessita de água, ter controle sobre ela é também ter controle sobre produção econômica de alguma maneira. Nós estamos testemunhando um novo colonialismo com a entrada do capital internacional no Mercado da Água brasileiro”, escreve Flávio José Rocha da Silva[1], doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP e pós-doutorado pelo Instituto de Energia e Meio Ambiente da USP, em artigo publicado por EcoDebate, 10-03-2020.

Eis o artigo.

Com a força crescente do Neoliberalismo nas últimas décadas, grupos econômicos nacionais e internacionais têm se mobilizado para tomar a distribuição da água das empresas públicas de saneamento básico administradas por Estados e municípios no Brasil. A investida pode ser pela compra das empresas, pela societarização ou ainda através das Parcerias Público-Privadas – PPP. Estas últimas são eufemismos para a privatização disfarçada, fazendo com que o lucro seja partilhado com os grupos privados e o prejuízo seja assumido pelo Estado, como já apontado por alguns estudiosos do tema.

Embora o avanço tenha se intensificado nos últimos anos, é fato que desde o governo do ex-presidente Fernando Collor de Mello (1990-1992) o discurso que defende o Estado mínimo como algo ideal propagado pela grande mídia, vem sendo alicerçado por leis elaboradas e promulgadas para facilitar este processo. O Estado nunca tornar-se-á mínimo, pois estará inevitavelmente alinhado ou não ao mercado. A primeira alternativa, o alinhamento com o mercado, foi o caminho trilhado com afinco no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), quando privatizou várias estatais brasileiras. O segundo caminho, a opção por não se alinhar completamente ao mercado, teve prioridade nos governos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e da ex-presidenta Dilma Rousseff (2011-2016). Obviamente, foram feitas concessões, como demonstram de certa forma Belo Monte e a Transposição do São Francisco. Mais tarde, o mercado ganhou grandes alinhados no Palácio do Planalto com o ex-presidente Michel Temer (2016-2018) e o atual governo do Presidente Bolsonaro[2].

Os defensores da privatização das empresas públicas de saneamento afirmam que o Estado tem sido inoperante no avanço do saneamento e que o mesmo será resolvido pelo setor privado. Uma falácia, pois países como a França e a Inglaterra estatizaram os serviços no início do século passado justamente porque as empresas privadas não cumpriram as cláusulas contratuais de expansão da rede. A iniciativa privada só voltou à cena após a universalização do saneamento feita naqueles países. A França concedeu as suas empresas de saneamento ao setor privado nos anos sessenta. Porém o modelo francês está em reversão neste momento por causa das denúncias de corrupção no sistema com vários municípios retomando o poder sobre a água, a exemplo de Paris. Nos anos oitenta, a Inglaterra privatizou os serviços, o que vem gerando reclamação de encarecimento nas contas de água nos últimos anos.

De certa forma, este caminho do privado para o público no saneamento foi o que aconteceu também no Brasil. Como revela Siqueira (2005, p. 41), “Em São Paulo, por exemplo, criou-se em 1893 a Repartição de Águas e Esgotos (RAE) em substituição à Companhia Cantareira, firma inglesa que a antecedeu e faliu.” O setor privado voltaria a atuar nesta área décadas mais tarde e o mesmo autor (2005, p. 41) acrescenta que, “Em 1953 foi rescindido, por total ineficiência, o contrato com a City of Santos, empresa que conseguira sucatear, nos vinte anos em que operou nessa cidade litorânea, as excelentes instalações projetadas pelo engenheiro Saturnino de Brito.” Parece que não aprendemos com o passado e a história volta a se repetir atualmente.

Como já comentado acima, foi no Governo Collor que a palavra privatização entrou na pauta da economia brasileira e surgiu também na área do saneamento. Segundo Siqueira (2005, p. 42), “O governo Collor foi o primeiro a pregar, no bojo do discurso da eficiência, a privatização da prestação dos serviços de saneamento.” Foi naquele governo que surgiu o Decreto Lei 8.171/1991[3], onde podemos ler no Capítulo VI em seu Artigo 20: “As bacias hidrográficas constituem-se em unidades básicas de planejamento do uso, da conservação e da recuperação dos recursos naturais.” Este modelo de administração a partir das bacias hidrográficas foi criado na França na década de sessenta (MARTINS, 2013) para facilitar a cobrança de multas e o pagamento de água bruta aos comitês de bacia.

O governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi, certamente, o mais aplicado em concretizar as políticas econômicas do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial para a água. Com o discurso de que o Brasil estava fora do processo da globalização que era inevitável no planeta, ele privatizou muitas empresas. Todos os investimentos na rede pública de saneamento sofreram diminuição em seus orçamentos naquele governo. A Lei 8.987/1995[4]– Lei de Concessões e Permissões de Serviços Públicos – que foi aprovada durante o seu governo viria facilitar a entrada de empresas privadas no setor de saneamento. Dois anos depois veio a Lei Nacional Nº 9.433[5], de 1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, trazendo a ideia da valoração econômica da água ao afirmar no Artigo 1º, Inciso II: “a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico;” e no Artigo 19º no seu inciso I: “reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor;” A criação da Agência Nacional de Águas – ANA – através do Decreto 9.984, no ano 2000, veio concretizar a cobrança da água sob a responsabilidade dos comitês de bacias. A descrição das prerrogativas da ANA citou apenas uma vez a questão a conservação dos corpos hídricos em seus artigos.

Não podemos deixar de ressaltar que o avanço na privatização do setor hidroelétrico no governo de Fernando Henrique Cardoso possibilitou ainda mais a privatização da água no Brasil, já que quando um grupo econômico tem poder sobre a vazão dos rios, passa a ter poder sobre as águas brasileiras.

Os dois mandatos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva frearam os ímpetos privatizante no Brasil, mas não totalmente. Houve avanços com a Lei 11.445/2007[6], conhecida como Lei Nacional do Saneamento Básico (LNSB) que foi um progresso neste setor. No entanto, foi no governo Lula que a Lei Nº 11.079/2004,[7] a chamada Lei de Parcerias Público-Privadas – PPPs – foi promulgada. A PPPs podem ser uma armadilha, como alerta Swyngedouw (2004, p. 39),

Parece que este tipo de parceria público-privada, no qual o setor público é responsável por investimentos de capital fixo de longo prazo (e muitos custos associados a eles) enquanto o setor privado organiza a parte lucrativa do sistema (gerenciamento da oferta), é a resultante mais provável do negócio privado da água.

Foi também neste governo que saiu do papel o Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco que promove a mercantilização da água no Nordeste brasileiro. Orçado em 4.5 Bilhões de Reais, já consumiu cerca de 11 Bilhões Reais e ainda não foi concluído.

A presidenta Dilma Rousseff deu continuidade ao seu antecessor no que se refere a água. Continuou a obra da Transposição do Rio São Francisco e as obras de hidroelétricas na Amazônia. Também ficou marcada pela substituição das cisternas de cimento (construídas de forma comunitária) pelas cisternas de plástico para o programa Um Milhão de Cisternas, fato muito criticado pelos movimentos sociais do Semiárido brasileiro.

Com relação ao governo do presidente Michel Temer (2016-2018), ele fez uma tentativa de privatização das águas brasileiras ao acionar o Banco Nacional de Desenvolvimento Social – BNDES – para ceder empréstimos aos grandes grupos econômicos que quisessem investir na compra e/ou parceria de empresas públicas de saneamento estaduais, em uma manobra onde o dinheiro público financia empresas privadas na compra das empresas públicas. Na lógica perversa do Neoliberalismo, a pregação diz que o Estado deve ser mínimo, mas este mesmo Estado é solicitado a repassar dinheiro para grandes empresas. Uma outra ação do governo Temer foi a Medida Provisória 844/2018 que buscava atualizar o Marco Legal do saneamento básico. Com a derrota no Congresso da Medida Provisória 844/18 em novembro de 2018, o Presidente Temer sancionou a Medida Provisória 868/18 no dia 27 de dezembro daquele ano, poucos dias antes de deixar a Presidência da República. Esta MP caducou em junho de 2019 por falta de acordos entre os líderes dos partidos no Congresso Nacional.

Obviamente o avanço do Mercado da Água não parou com a derrota da Medida Provisória 868/18. Com o governo Bolsonaro e sua agenda de privatizações, o Congresso Nacional discute o novo Marco Regulatório para o saneamento básico com o Projeto de Lei Federal Nº 4162/19[8]. Uma das críticas que se faz a este PL é que ele afeta o subsídio cruzado que garante o serviço de abastecimento para os municípios pequenos que poderão ter aumento das tarifas. Caso este ponto não seja revisto, os pequenos municípios poderão ser preteridos no processo de licitação para os serviços de saneamento por parte das empresas privadas ganhadoras das concorrências por não serem lucrativos.

É fato que a água sempre foi privatizada de alguma forma no Brasil, mas o que nós estamos a testemunhar neste momento é a mudança da relação entre o Estado brasileiro com a sua água, colocando em perigo a sua própria soberania, já que a transferência do controle dos reservatórios para companhias privadas trará novas configurações sobre as formas de apropriação da mesma. Posto que toda a cadeia produtiva necessita de água, ter controle sobre ela é também ter controle sobre produção econômica de alguma maneira. Nós estamos testemunhando um novo colonialismo com a entrada do capital internacional no Mercado da Água brasileiro.

Um dos resultados desta transferência de poder sobre a distribuição da água é que o monopólio privado pode fixar junto aos usuários uma tarifa imposta pelas empresas, mesmo que teoricamente os preços devam ser fiscalizados pelas agências reguladoras. Como alerta Peixoto (2013, p. 504), “Ressalve-se, porém, que nos casos de monopólio e oligopólio, não havendo instrumento de defesa da concorrência ou de regulação econômica, os preços naturais (custos econômicos) podem ser distorcidos por lucros exorbitantes que os produtores se atribuem.” Não há que se condenar o mundo dos negócios privados, posto que para se manter e expandir no mercado as empresas devem aumentar os seus lucros em escala crescente. Porém, há que se ter em conta que uma empresa privada não terá o interesse coletivo como prioridade, pois não é esta a sua função.

O governo Bolsonaro e os governadores Doria (PSDB-SP) e Witzel (PSL-RJ), para citar apenas dois governadores defensores da privatização da água, alinhados ao que existe de mais retrógrado no campo do Neoliberalismo, vão facilitando o Mercado da Água com a promessa de universalização do saneamento básico. De certo, podemos afirmar que uma possível aprovação do PL 4162/19 intensificará o avanço deste Mercado no Brasil com possíveis consequências desastrosas para a população brasileira.

Referências Bibliográficas:

BRASIL. Código da Águas e legislação correlata. Brasília: Senado Federal. Coleção Ambiental. Vol. I. 2010.

MARTINS, Rodrigo Constante. De bem comum a ouro azul: a crença na gestão racional da água. Contemporânea: Revista de Sociologia da UFSCAR. V. 2 n. 2. Jul Dez. 2012. p. 465-488.

­­­­­_______. A construção social da economia política da água. Revista Sociologia, Problemas e Práticas. Nº 73, 111-130. 2013.

PEIXOTO, João Batista. Aspectos da gestão econômico-financieira dos serviços de saneamento básico no Brasil. In HELLER, Leo; CASTRO, José Esteban (Orgs.) Política pública e gestão de serviços de saneamento. Belo Horizonte: Editora UFMG; editora Fiocruz. 2013. p. 502-524.

PETRELLA, Riccardo. O manifesto da água. Rio de Janeiro. Vozes. 2002.

SILVA, Flávio José Rocha da Silva. Grandes Obras no Nordeste: o caso do Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco. In
Contemporânea Revista de Sociologia da UFSCAR. V. 8 N. 2 . 2018. p. 607-634.

SIQUEIRA, José Eduardo de Campos. Ideologia da água e privatização dos serviços de saneamento. In DOWBOR, Ladislau; TAGNIN, Renato Arnaldo (Orgs). Administrando a água como se fosse importante: gestão ambiental e sustentabilidade. São Paulo: Editora Senac. 2005. p. 37-46.

SWYNGEDOUW, Erik. Privatizando H2O: transformando águas locais em dinheiro global. In R. B. Estudos urbanos e Regionais. V. 6, N.1. Maio 2004. p. 33-53.

SWYNGEDOUW, Erik. Águas revoltas. In HELLER, Leo; CASTRO, José Esteban (Orgs.) Política pública e gestão de serviços de saneamento. Belo Horizonte: Editora UFMG; editora Fiocruz. 2013. p. 76-97.

Notas:

[1] Flávio José Rocha da Silva é doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP com Pós doutorado na USP.

[2] Durante o governo do presidente Itamar Franco (1992-1995) não houve um processo de privatização intenso.

[3] Confira o Decreto Lei 8171/1991.

[4] Confira a Lei 8.987/1995.

[5] Confira a Lei 9.433/1997.

[6] Conf. a LNSB.

[7] Cf. a Lei.

[8] Confira o Projeto de Lei 4162/19 que trata do Novo Marco Legal do saneamento básico.