Publicado no Jornal GGN
Por Maitê Ferreira
Precisamos de critérios melhores para escolher nossos ícones. Se lutamos por um ativismo coerente, os movimentos identitários liberais pautados pelo lugar de fala nos encaminham para a degradação e dispersão de todo e qualquer ativismo. Os movimentos sociais não podem se pautar pela mera conformação de uma estética ativista. Afinal de contas, mais valem as atitudes do que as palavras, mais vale o conteúdo do que a forma, mais vale ser do que parecer.
Muito se engana quem se indispõe de maneira preconceituosa ao conteúdo apresentado pelo Big Brother Brasil. Este programa integra a cultura de massas, e tem uma trajetória marcada pelas inevitáveis polêmicas interpessoais — valorizadas pelas audiências que propiciam — e pelo estímulo de reflexões da sociedade acerca de seus próprios valores e culturas. Não esqueçamos que foi a partir do BBB que temas como a homoafetividade (quem não lembra de Jean Wyllys?) e transexualidade (quem não lembra de Ariadna?) passaram a ser mais pautados na sociedade brasileira. O último BBB, por sua vez, refletiu tardiamente o avanço de uma consciência feminista na juventude brasileira, bem como antirracista, em que a médica Thelma se alçou como vencedora.
Nesta última edição, vemos que esta tendência em estimular polêmicas culturais na sociedade passou a se tornar a própria estratégia midiática no programa. A ruptura da base bolsonarista ensejou uma mudança no perfil da audiência da Globo, que passa a ser mais assistida pela classe média tida como esclarescida, antibolsonarista e liberal em seus costumes. Em resposta, a Globo oferece um conteúdo marcado pela suposta luta contra os preconceitos das minorias e tenta emplacar a justificativa do liberalismo econômico e das privatizações.
O resultado é uma certa degradação do ativismo nas ficções liberais do “lugar de fala” e da inclusão social a partir da representatividade. Algumas deduções advindas desta ficção são percepções que se tornam bastante comum nos discursos políticos, como por exemplo: se o país é governado por negros e brancos, estamos alcançando o fim do racismo; se existe um gay ocupando um cargo público, é sinal que a homofobia vem recuando na sociedade; se os Estados Unidos hasteiam a bandeira LGBT nos órgãos públicos, então a população LGBT está segura neste país. Logo, se existem mais negros que brancos em uma casa, e se estas pessoas negras declaram que são “militantes”, estão criadas as condições para a formação de um ambiente etnicamente controlado para ser “antirracista”.
A distância entre representatividade e o verdadeiro ativismo é a mesma que separa a estética da prática política — ou práxis. No mundo em que a militância se resume a uma luta por identidades, vestir uma camisa do Karl Marx vale o mesmo que mobilizar operários para uma greve geral. Ora, para a militância liberal e identitária, mais vale o “lugar de fala” do que o “lugar de prática”. Caracterizada basicamente pela retórica e pela estética, esquecendo da práxis, a noção (pós-)moderna de militância se afasta de maneira irremediável da luta por direitos sociais e da extensão de pontes que unifiquem a população em uma causa que una negros e brancos, pessoas heterossexuais e LGBTs, homens e mulheres. Este tipo de união já soa algo tão estranho atualmente: mal parece que era por isso que a esquerda lutou durante todo o século XX. Antes de ser fuzilada e jogada em um canal, a Rosa Luxemburgo concluiu a luta pelo socialismo na seguinte máxima: “Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”. O que mudou de lá para cá?
É bem verdade que os reality shows fazem cair as máscaras dos ícones de uma nova geração reconhecida como militante contra as desigualdades de raça e gênero. O que vale mais refletir é porque estas pessoas passaram a ser reconhecidas como ícones em primeiro lugar.
É bem sugestivo que logo na edição em que o BBB contou com mais participantes negros (em sua maioria, “militantes”) é que percebemos como a luta antirracista, marcada pelo identitarismo, é representada como uma verdadeira comédia. O recurso retórico ao lugar de fala parece autorizar que pessoas negras maltratem umas a outras (como o abuso psicológico de Karol Conka contra Lucas), ou que um negro impeça outra negra de falar (como Lucas, quando tentava pregar a estratégia da guerra racial para Camila), ou então que uma negra tida como militante deprecie nordestinos e nordestinas como pessoas mal-educadas (Karol x Juliette) e declare que a “tortura” psicológica seja um bom método para tratar pessoas com desordens mentais (Karol x Lucas), ou então que uma pessoa branca deva aguentar calada ser gritada por uma negra, porque tem que reconhecer seus privilégios (Fiuk e Lumena x Carla).
Em meio a tantos absurdos, que são falados a torto e a direita com base em uma prerrogativa natural, conforma-se uma verdadeira coalizão das trevas. Karol, Lumena, Fiuk — são todos militantes — e por isso mesmo se sentem autorizados(as) a insultar e cancelar toda e qualquer pessoa que venha a discordar de suas posições que já vem certas “de nascença”. Mal eles sabem o que o Brasil anda pensando de “sua revolução”.
Mais vale refletir o que faz pessoas como Karol Conká se sentirem em tal pedestal, acima do bem e do mal, simplesmente por ser uma rapper negra. É louvável a ascensão de artistas negros nas artes e nas culturas: mas isso nunca foi uma novidade no Brasil: vejamos Monteiro Lobato, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Elza Soares, Jorge Ben… Ora, a própria origem do samba no país! Estes artistas negros não foram celebrados por serem negros, mas pela sua arte. Só se tornaram ícones do povo negro pelo conteúdo de sua obra. Podemos falar o mesmo de Renato Russo, Cássia Eller ou Ney Matogrosso: foram artistas gays celebrados, mas pelo conjunto da sua obra, e não pela sua orientação. Mas no Brasil do século XXI, mais vale o que uma pessoa parece do que uma pessoa é. E neste sentido, deixamos para prestar atenção na ideologia que um ícone transmite depois que elevamos a pessoa a esta mesma posição de ícone.
Talvez a prática social dos cancelamentos nada mais seja do que a idealização de vários arquétipos de como uma pessoa negra deve pensar, ser e se portar — como uma pessoa LGBT deve pensar, ser e se portar, e etc. O público cobra coerência: mas esta coerência é de ordem prática e não estética. Então a juventude promove a fúria iconoclasta, derrubando os ícones que ela mesma alçou a posição de “militantes” que promovem sua “revolução”. Que revolução? A de ter nascido assim e por isso se sentir no direito de tratar outras pessoas de maneira maldosa? A de justificar sua própria arrogância e egocentrismo em tiradas militantes da boca pra fora?
No Brasil dos cancelamentos, a estética promove a ascensão; enquanto a falta de conformidade das práticas individuais com os arquétipos “militantes” acarretam sua queda. Este movimento contraditório representa uma tomada de consciência, mas ao mesmo tempo desacreditam e distorcem socialmente as ideias de ativismo, quanto mais de revolução. Afinal, o que importa mais: ter nascido preto ou branco; gay ou hetero; cis ou trans? Ou, no fundo, o que estamos desejando é a mais simples coerência entre palavras e atitudes de quem se declara militante? Mais vale uma negra militante gritar e abusar psicologicamente de outro negro, ou um homem branco hetero e cis que pelo menos não maltrate abertamente, em rede nacional, as mulheres e os negros? (vide Caio e Rodolfo).
Precisamos de critérios melhores para escolher nossos ícones. Se lutamos por um ativismo coerente, os movimentos identitários liberais pautados pelo lugar de fala nos encaminham para a degradação e dispersão de todo e qualquer ativismo. Os movimentos sociais não podem se pautar pela mera conformação de uma estética ativista. Afinal de contas, mais valem as atitudes do que as palavras, mais vale o conteúdo do que a forma, mais vale ser do que parecer.