Publicado no Migalhas
Por Gabriela Shizue Soares de Araujo
A edição de 2021 do Big Brother Brasil, reality show exibido anualmente pela Rede Globo, tem gerado um amplo debate na opinião pública no que se refere à responsabilidade social das empresas com relação aos direitos humanos e também sobre a horizontalidade desses direitos.
O anúncio dos participantes do programa, com a maior diversidade racial e de orientação sexual da história de vinte anos do reality show, inclusive com alguns deles conhecidos como militantes dos direitos humanos, atraiu a atenção até de pessoas que não são telespectadoras habituais desse tipo de entretenimento, na expectativa de que temas como diversidade, inclusão, feminismo, antirracismo, entre outros, pudessem eventualmente ganhar uma pauta positiva no debate público, impulsionados pela alta audiência que veículos de comunicação de massa, como a Rede Globo, naturalmente atraem.
Lamentavelmente, o resultado obtido foi o oposto. O público foi constrangido a assistir atônito os mesmos participantes que geraram expectativas positivas praticarem violência psicológica, bullyng, gaslighting, xenofobia, LGBTfobia, racismo, preconceito religioso, entre outros tipos gravíssimos de discriminação e abuso moral, o que culminou na desistência de uma das vítimas em continuar no programa1 2, aliás, a principal delas: Lucas Penteado, um jovem ator e músico negro, pobre e bissexual de São Paulo.
A pressão sofrida pelo jovem Lucas, a exclusão, o desprezo com que foi tratado por boa parte dos demais participantes, com episódios de extrema perversidade, geraram uma grande comoção nacional e cobranças de que a emissora e os patrocinadores do programa intervissem para interromper o que se entendeu como tortura psicológica, mas que se pode destrinchar em inúmeras violações a direitos humanos.
O Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou por consenso, em junho de 2011, os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos3 (POs), propostos pelo Professor John Ruggie e baseados em três parâmetros: (i) proteger: dever dos Estados de protegerem os direitos humanos; (ii) respeitar: obrigação das empresas de respeitarem esses direitos e; (iii) reparar: dever de ambos, Estados e empresas, de proverem remédios efetivos em caso de violação de direitos humanos.
Com a adesão do Brasil desde o início, os 31 Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos (POs) estabelecem deveres aos Estados na proteção dos direitos humanos contra impactos adversos que possam ser causados pelas empresas, inclusive para garantir que estas procedam às reparações devidas. Além disso, os POs também determinam medidas que devem ser adotadas pelas empresas para assegurar o respeito aos direitos humanos internacionalmente reconhecidos, prevenindo eventuais violações e, quando não possível a prevenção, agindo ativamente para que cessem e sejam devidamente reparadas.
No caso em comento, importa trazer à baila o PO de número 13, abaixo transcrito:
“A responsabilidade de respeitar os direitos humanos exige que as empresas:
- Evitem que suas próprias atividades gerem impactos negativos sobre direitos humanos ou para estes contribuam, bem como enfrentem essas consequências quando vierem a ocorrer;
- Busquem prevenir ou mitigar os impactos negativos sobre os direitos humanos diretamente relacionadas com operações, produtos ou serviços prestados por suas relações comerciais, inclusive quando não tenham contribuído para gerá-los”.
Pela leitura do disposto acima, depreende-se que, muito embora as condutas praticadas pelos participantes do Big Brother Brasil 2021 possam ser individualizadas para as devidas responsabilizações na pessoa física de cada qual, é inequívoca a responsabilidade das Organizações Globo em agir para fazer cessar as violações a direitos humanos praticadas em consequência de suas atividades negociais, ainda que não tenham sido fruto direto de suas ações.
Aliás, importa destacar que, a partir do momento em que uma empresa toma conhecimento de casos de violações a direitos humanos no âmbito de suas atividades produtivas e econômicas, é exigível seu engajamento ativo para fazer cessar e também reparar tais condutas, o que não se aplica exclusivamente às Organizações Globo, detentora das instalações físicas e produtora do reality show Big Brother Brasil, mas se estende também aos patrocinadores e marcas parceiras do programa, posto que estão lucrando com o produto de um espetáculo aparentemente promovido às custas de sofrimento humano.
Ora, se uma empresa parceira está ciente das violações a direitos humanos ocorridas em um ambiente por ela patrocinado, é inegável sua responsabilidade social em cessar com a contribuição financeira, exercendo assim sua influência mitigatória sobre a empresa propriamente vinculada aos fatos, caso contrário, estaremos diante de uma omissão que pode ser considerada como cumplicidade silenciosa4.
Ademais disso, há que se falar ainda na horizontalidade dos direitos fundamentais e sua aplicação direta sobre as relações privadas, conforme sedimentado pelo Supremo Tribunal Federal desde o julgamento do Recurso Extraordinário 201.819/RJ5, do qual vale transcrever um trecho do voto do ministro Celso de Mello:
“É por essa razão que a autonomia privada – que encontra claras limitações de ordem jurídica – não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais”.
Sendo assim, não há como se invocar qualquer contrato ou autorização firmados pelos participantes do reality show com a emissora de televisão, quando as relações ali travadas ensejam gravíssimas violações a direitos humanos, conforme vem sendo denunciado desde o início da edição do Big Brother Brasil 20216.
Segundo noticiado em alguns veículos de imprensa, o Ministério Público do Rio de Janeiro já recebeu mais de vinte denúncias7 contra uma participante específica do programa televisivo, o que poderá desencadear na apuração individualizada de suas condutas, mas não resolveu de imediato a violação continuada a direitos humanos que se perpetrou no reality show até a desistência da maior vítima direta, embora não a única: no momento em que este artigo é escrito, há vários relatos de abusos continuados sendo cometidos dentro da casa, contra outros participantes8.
Em casos como esse, é necessária uma atuação mais incisiva do Estado, especialmente quando vimos tantos incidentes de dano moral coletivo, com atos discriminatórios praticados contra diversos grupos vulneráveis, o que poderia ensejar até mesmo um pedido liminar em ação civil pública, ou quaisquer outras medidas que cumprissem com o dever do Estado brasileiro de defender os direitos humanos, conforme previsto nos “Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos”, aos quais o Brasil aderiu há dez anos.
Infelizmente, ao mesmo tempo em que um participante que fez referências a saudações nazistas no Big Brother de Portugal foi sumariamente expulso do programa, com direito a palavras da produção em respeito à memória das vítimas do holocausto9, por outro lado, aqui no Brasil, uma vítima direta de reiteradas violações aos seus direitos se viu pressionada a abandonar o reality show, sem qualquer punição ou alerta a seus algozes. Outras vítimas não tiveram a coragem de desistir e permanecerem suportando violência psicológica e discriminações dentro do programa.
Diante da omissão das empresas envolvidas, é obrigação do próprio Estado se socorrer, com o rigor necessário, de todos os instrumentos cabíveis para propiciar uma reparação coletiva à sociedade brasileira, sob pena de se criar graves precedentes para novas formas de violência, abrindo-se uma fissura moral intolerável no que diz respeito à postura estatal com relação à proteção dos direitos humanos neste país.
Por fim, fica a reflexão: de nada adianta a adoção de políticas de compliance altamente sofisticadas, se estas não se traduzirem efetivamente em ações concretas. As empresas precisam compreender que a coerência com a sua responsabilidade social pode ser muito mais lucrativa e perene a longo prazo, do que os prejuízos causados à sua imagem pela omissão passiva diante de violações a direitos humanos.
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1 Disponível em clique aqui. Acesso em 08/02/2021.
2 Disponível em clique aqui. Acesso em 08/02/2021.
3 Disponível em clique aqui. Acesso em 08/02/2021.
4 Nesse sentido, pode-se falar em cumplicidade silenciosa nas violações a direitos humanos, conforme definido no guia “Avaliação de Impactos em Direitos Humanos – o que as empresas devem fazer para respeitar os direitos de crianças e adolescentes”, do FGV.CDHeE (p. 42): “A cumplicidade, no âmbito de direitos humanos e empresas, configura-se como uma forma de participação indireta de empresas em violações de direitos humanos. Trata-se, portanto, de situações em que, mesmo não sendo a autora de violações, ela contribui, de forma consciente, para que o dano ocorra, seja por meio de ações ou de omissões. São elementos que caracterizam cumplicidade: (i) contribuir deliberadamente com violações de direitos humanos cometidos por terceiros; (ii) beneficiar-se diretamente das violações de direitos humanos de terceiros (cumplicidade vantajosa); (iii) calar-se e se omitir ao presenciar violações sistemáticas ou contínuas dos direitos humanos não alertando, por exemplo, as autoridades competentes (cumplicidade silenciosa)”. Disponível em: clique aqui. Acesso em 08/02/2021.
5 Disponível em clique aqui. Acesso em 08/02/2021.
6 Disponível em clique aqui. Acesso em 08/02/2021
7 Disponível em clique aqui. Acesso em 08/02/2021.
8 Disponível em clique aqui. Acesso em 09/02/2021.
9 Disponível em clique aqui. Acesso em 08/02/2021