O bolsonarismo é burro ou perverso? Por Luis Felipe Miguel

Atualizado em 18 de junho de 2023 às 11:04
Deputada federal Carolina De Toni (PL-SC). Foto: reprodução

A deputada Carol de Toni não se destaca na política nacional. Talvez seja pouco histriônica para os padrões bolsonaristas, com sua voz monocórdica e seu rosto sem expressão. Mas faz grande sucesso em Santa Catarina. Reelegeu-se como a mais votada do Estado. Tem mais de 700 mil seguidores, seja no Instagram, seja no Twitter.

Seus 15 minutos de fama nacional vieram com a “invertida” – para usar uma palavra da moda, da qual eu não gosto – do prof. José Geraldo de Souza Júnior, ex-reitor da Universidade de Brasília, numa sessão da CPI do MST. E ainda passou recibo: “Ele me ofendeu com categoria acadêmica”.

Para sermos precisos, Zé Geraldo (como é conhecido por aqui) não chamou a deputada de burra. Disse que ela está presa num determinado enquadramento da realidade e não consegue enxergar nada além do que já está previsto nele. Não é a deputada que é burra. É o enquadramento a que ela se aferra que é burro. Uma diferença sutil, mas significativa.

Eu não sei se Carol de Toni é burra. Acho que é uma esperta. Uma advogada insignificante, que em 2016 não conseguiu se eleger vereadora em Chapecó. dois anos depois estava na Câmara dos Deputados, no lucrativo papel de paladina do “agro” que domina o Oeste catarinense. E dobrou a votação em 2022.

Mas Zé Geraldo tocou num ponto importante de que o bolsonarismo produz um universo mental fechado hermeticamente, que torna seu gado incapaz de ser confrontado pela realidade.

Há alguns anos, reagindo a pesquisa que mostrava aumento da popularidade de Bolsonaro, me envolvi numa pequena polêmica sobre o tema – tendo como foco não gente como Carol de Toni, que se deu bem surfando na onda da extrema-direita, mas o pobre que grita “mito! mito!” enquanto só se ferra mais.

Mas aqueles que estudam a base popular da extrema-direita insistem que não devemos chamar os bolsomínions de “burros”.

Se o ponto é não hostilizar pessoas que precisamos conquistar para posições mais democráticas e civilizadas, tudo bem. Mas se não devemos realmente considerá-los burros – daí já acho difícil.

“Burro” parece se referir a um déficit inato, o que seguramente é incorreto e preconceituoso. A rigor, são pessoas com discursos e comportamentos burros. Dizemos que elas são burras por metonímia. São pessoas que militam por medidas que prejudicam seus interesses mais óbvios: por uma polícia que mate seus filhos, por um Estado que negue seus direitos, por uma política econômica que as empobreça e destrua seu futuro. Como defini-las?

São pessoas que acreditam nos maiores absurdos: em kit gay, em mamadeira de piroca, em ideologia de gênero, em terra plana, na inocência de Michelle, em empreendedorismo. Como definir essas pessoas?

Não são questões complexas, que exijam muita reflexão para passar das causas aos efeitos, ou mentiras sofisticadas e verossimilhantes. São coisas tão insanas que, muitas vezes, nós nem sabemos como rebater.

Podemos discutir como essa burrice é produzida, quais mecanismos a fomentam. Mas não dá para não chamá-la pelo nome.

Alguns argumentam que o apoio a Bolsonaro tem suas razões. Por exemplo, que o sacerdote pilantra que orienta as escolhas políticas reacionárias é também alguém que oferece consolo e apoio espiritual em algumas circunstâncias. Ou que a violência urbana, que atinge em primeiro lugar as classes populares, explica a sedução de propostas “duras” de segurança pública. Mas isso apenas nos diz que esse voto não é aleatório, que tem alguma motivação. Permanece o fato de que ele expressa uma profunda incapacidade de relacionar as escolhas políticas com suas consequências esperadas, de vinculá-las aos interesses ligados às condições reais de vida.

Ter uma motivação para a adesão política não significa que ela é esclarecida, pelo simples fato de que essa motivação pode ser… burra.

A ignorância política das massas – e incluo aqui, igualmente, trabalhadores pobres e classes médias – é um componente do sistema político vigente, ativamente produzido e reproduzido por inúmeros aparelhos. Cabe ao campo popular trabalhar permanentemente para combatê-la.

A constatação da burrice dominante é, portanto, uma acusação contra a esquerda, que não fez ou fez mal o seu trabalho.

Mas seria “arrogante” chamar o bolsonarista de burro. Já eu penso que arrogante é quem julga que, por definição, ele não pode ser considerado burro. É como dizer: essas pessoas são assim mesmo, não podemos esperar mais nada delas. É negar a possibilidade de agência. É desumanizar.

Há, claro, uma explicação alternativa: o que o bolsonarismo revela é uma pulsão pela violência. Racismo, misoginia, homofobia e desprezo pelos mais pobres seriam atrativos tão poderosos que compensariam todas as perdas.

Não seria burrice, mas perversidade – ainda pior.

(Parte deste texto se baseou numa postagem de Facebook, publicada anos atrás. Depois, um professor carioca, em acesso de desonestidade intelectual, infelizmente não incomum no caso dele, publicou artigo dizendo: “Miguel [2019] afirma que ‘a maioria dos eleitores são burros e perversos’, desconhecendo deliberadamente os contextos de violência criminosa contra imensas parcelas do eleitorado” – isto é, colocando entre aspas algo que não escrevi, citando postagem de rede social como se fosse artigo acadêmico e distorcendo meu argumento. Nosso pântano moral não se resume ao bolsonarismo.)

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