É impossível derrotar um time que canta o hino com a paixão demonstrada pelos jogadores brasileiros.
DE NAVARRA, Espanha
Houve um tempo em que eu era um ardoroso fã de futebol e nutria uma paixão desmedida pelo Treze de Campina Grande e pela Seleção Brasileira.
Hoje, para mim, isso é coisa do passado. Algo parecido como um interesse efêmero da infância ou da adolescência.
Acredito que em algum momento perdi a fé na autenticidade deste esporte. Ocorreu-me que talvez estivesse vivendo uma ilusão alimentada pela má-fé de terceiros.
Isso me fez esconjurar tudo relativo a este esporte. Do dia para a noite.
Por uma destas ironias do destino, no entanto, vejo-me vivendo na Andaluzia profunda quando se apresenta uma final de uma importante competição futebolística entre Brasil e Espanha.
Inevitavelmente, nas pequenas reuniões há sempre a referência à partida, precedida da advertência de que ali se encontra um brasileiro. Torno-me, sem direito de defesa, um alvo fácil para todo tipo de sutis e risíveis provocações. Quase um refugiado de guerra na terra dos algozes de sua nação.
Passo a repetir o mesmo mantra: não gosto de futebol; no atual momento me parece um escapismo frívolo diante de todos os problemas e do inconformismo de meus compatriotas.
Não adianta.
E a verdade é que os espanhóis há um bom tempo acreditam na superioridade a toda prova de sua seleção. E não é para menos.
A Fúria arrebanhou os principais títulos no cenário mundial nos últimos anos, garantindo uma hegemonia inquestionável. Mais que isso, apropriou-se também de um estilo que se aproxima muito daquele que outrora nos distinguia no futebol mundial.
Na Espanha, o futebol brasileiro não é imediatamente associado ao estilo pragmático e protocolar dos dias atuais. Rima, ao invés, com duas gerações brilhantes e meteóricas: a de 70 e a de 82.
Por aqui, a expressão “jogo bonito” não tem tradução para o castelhano. É pronunciada em português. Idioma daqueles que a eternizaram.
É comum ouvir narradores esportivos falando uma corruptela de “tique-taque” para se referir a um estilo de jogo no qual a movimentação em campo associa-se ao lirismo de um toque de bola leve, envolvente e irremediavelmente ofensivo.
Por esta razão, enfrentar a Seleção Brasileira, que eternizou tal estilo, na final de uma prévia da Copa do Mundo, no lendário Maracanã, representava o sonho para uma equipe que emulou e preservou algo parecido ao que fazíamos num passado distante, e que abandonamos em nome da glória efêmera.
Para a equipe de Vincente Del Bosque, tratava-se da revalidação da sua hegemonia no templo supremo do futebol. Ganhar ali seria como receber as bênçãos dos deuses dos estádios.
À meia noite do último domingo, na falta de coisa melhor para fazer, plantei-me na frente da televisão para assistir a partida. Minha postura era provocativa. Minha esposa torcia ardentemente pelo Brasil, eu me sentia na obrigação de defender a Espanha.
Dei sorte de ligar a TV segundos antes da execução dos hinos, porque exatamente ali dei-me conta de que não havia qualquer oportunidade de vitória para “La Roja”, como a chamam por aqui.
O hino brasileiro não foi simplesmente executado. Ele foi bradado.
Naquele simulacro de guerra entre Estados, nenhuma equipe proveniente de países com soberanias relativizadas e crises de identidade nacional lograria derrotar um Brasil que ali se revelava titânico, avassalador.
O espetáculo épico e arrepiante da interpretação do hino pela torcida brasileira reserva uma humilhação e um massacre adicionais para a equipe contrária, forçada a permanecer impassível enquanto a melodia termina e os atletas e o público continuam cantando em êxtase patriótico.
É a crônica de uma derrota anunciada
“¡Madre mia!” Foi a expressão dos narradores televisivos espanhóis imediatamente após executado o hino. Salientavam que o Brasil acabara de marcar um gol psicológico na equipe espanhola.
A história da partida já é conhecida. O Brasil atuou com um rolo compressor. Nunca esteve perto, no entanto, daquela equipe que flanou pelos estádios espanhóis em 1982.
Ainda assim, num dado momento, diante do massacre alimentado pela multidão imersa numa catarse, me veio à mente o relato da partida disputada entre as mesmas equipes 63 anos antes, nas finais da Copa de 1950.
Reza a lenda que ao longo da goleada de 6 a 1 que a equipe brasileira aplicava na Espanha, o público começou a entoar “As Touradas de Madri”, uma marchinha de carnaval do saudoso Braguinha.
A música ressoava pelo estádio enquanto a multidão sacava lenços brancos dando um “adiós” à Fúria. O povo regendo a equipe de Ademir, Chico, Friaça e Zizinho, que eventualmente perderia a Copa para o Uruguai e ganharia um lugar para a história, juntamente com outras como a Hungria de 1954, a Holanda de 1974 e o Brasil de 1982.
Creio que minha antipatia com o futebol, afinal, talvez tenha a ver com a efêmera natureza do lirismo neste esporte. Sempre ameaçado pelo pragmatismo que sacrifica valores nobres na busca por uma vitória cuja densidade histórica no mais das vezes resulta duvidosa.