O caso da descendente indígena que se tornou promotora, defensora dos povos originários e agora corre o risco de virar ré em ação penal

Atualizado em 7 de fevereiro de 2020 às 7:36

Descendente de indígena, a promotora Solange Linhares Barbosa tem tido dificuldade para exercer seu trabalho no Ministério Público do Mato Grosso. Há pouco tempo, ela respondeu a um procedimento administrativo por ter participado de um ritual de uma tribo nua como as nativas. Agora, foi denunciada criminalmente por celebrar termos de ajuste de conduta para que empresas indenizassem ONGs que atuam em defesa dos povos originários. O procurador-geral do Estado, José Antônio Borges, considerou que ela própria se beneficiava da indenização, mas na denúncia não demonstrou como. Mesmo assim, a denunciou criminalmente, e o Conselho Superior do MP no Estado a afastou por 30 dias. Mas Solange não está sozinha. O Movimento Nacional de Mulheres do Ministério Público, que congrega cerca de 500 promotoras e procuradoras de justiça de todo o país, manifestou apoio à promotora.

Leia a nota:

“O Movimento Nacional de Mulheres do Ministério Público, que congrega cerca de 500 promotoras e procuradoras de justiça de todo o país, manifesta APOIO à Promotora de Justiça do Estado de Mato Grosso, Solange Linhares Barbosa, diante da forma com que foi tratada nos procedimentos administrativos e ação penal, que responde, decorrentes de sua atuação perante a população indígena na comarca de Paranatinga. Nesses processos, a possível conduta da Dra. Solange, de frequentar as aldeias indígenas ou se comportar como se mulher indígena fosse, é vista como demérito, sendo-lhe imposta uma reprovação de seu comportamento, em fatos que, a princípio, não se referem ao objeto dos processos. Há designações e ilações que permitem inferir à população indígena e sua cultura um juízo depreciativo de valor. Sem qualquer análise sobre o mérito das questões apontadas nos processos administrativos e penal, este MOVIMENTO expressa sua irresignação com a forma estigmatizante atribuída à conduta da Dra . Solange Linhares em relação a sua proximidade e identificação cultural com a população indígena.

Espera-se que os fatos sejam devidamente apurados, com tratamento digno à membra do Ministério Público, que se encontra sob investigação, de forma adequada e técnica, com absoluto respeito à cultura e à diversidade étnico-racial envolvidas.

Em 06 de fevereiro de 2020.

MOVIMENTO NACIONAL DE MULHERES DO MINISTÉRIO PÚBLICO”

A advogada Luiza Eluf, que é procuradora de justiça aposentada, se manifestou em nome do grupo:

“A meu ver, toda e qualquer pessoa que procure trazer conforto às comunidades indígenas, tão mal cuidadas no Brasil de hoje, qualquer pessoa que procure ajudar aqueles que estão passando por sérias dificuldades, que não recebem o respeito devido nem das comunidades e nem das autoridades brasileiras, todos eles e elas merecem o apoio do Ministério Público, merecem o apoio de toda nossa sociedade, porque a Constituição brasileira deixa muito clara que todas e todos são iguais. E iguais que dizer que têm os mesmos direitos. Se nós temos uma cultura que não quer usar roupa, ela não precisa usar roupa. Se nós temos uma cultura que planta mandioca, ninguém está proibido de ajudar esta cultura a plantar mandioca também. Temos por parte da promotora uma conduta edificante para o Ministério Público. Uma conduta que poderia ser de todos os brasileiros. E não apenas de uma promotora que é consciente a respeito disso e que trabalha em um estado da federação onde ainda permanecem muitas comunidades indígenas, e essas comunidades não podem ser negligenciadas. Muito pelo contrário. Temos uma dívida com as comunidades indígenas e um governo que menospreza a população que existia no Brasil antes dos europeus chegarem aqui, essa população, sim, que é dona das terras.”

Diz ainda Luiza Eluf:

“E temos um governo que não dá atenção ou uma instituição que persegue uma promotora que está dando atenção à comunidade carente, indígena. Essas pessoas não entenderam nada do que está escrito na nossa legislação, essas pessoas não têm o mínimo resquício de humanidade. E eu quero aqui louvar a conduta da doutora Solange Linhares, porque o que ela fez foi suprir as falhas de um Estado omisso e cruel com relação às populações carentes.”

Luiza Eluf foi secretária nacional dos Direitos da Cidadania no governo de Fernando Henrique Cardoso, integrante do grupo de juristas que fez o anteprojeto de reforma do Código Penal. Conhecida pela defesa dos direitos das mulheres, recentemente ajudou a elaborar a lei da importunação sexual. Seu apoio tem, portanto, o peso jurídico e também o de militante da causa dos direitos das mulheres.

Solange Linhares não deu entrevista sobre o caso, mas divulgou uma nota:

“Atuei por bastante tempo na defesa de direitos indígenas e sempre soube que poderia sofrer algum tipo de questionamento por isso. Todos podem ser investigados e acionados pelo Ministério Público e eu não sou melhor que ninguém, mesmo sendo uma membra do órgão”.

Na nota, Solange afirmou também que “não se arrepende de nenhuma das ações e projetos executados pela minha promotoria junto às comunidades indígenas do Alto Xingu, Bakairi e Xavante, que fazem parte da minha antiga comarca (Paranatinga), e provarei que não incorri em falta funcional ou crime e sim executei o meu mister constitucional com afinco”.

O caso da promotora do Mato Grosso é mais uma evidência de que o Brasil parece ter regredido séculos nos anos mais recentes.

Seguem algumas fotos do trabalho de Solange Linhares: