POR EUGÊNIO ARAGÃO, ex-ministro da Justiça
A política de Bolsonaro e de seus hiperativos acólitos tem densidade de cosmovisão ou será apenas um ruído sem sentido? Há “Leitmotiv” na desgovernança dos últimos dois meses ou estamos à deriva num mar de non-sense? O que é isso que estamos experimentando no espaço público brasileiro?
A perplexidade tem razão de ser. Seria fácil rotular essa coisa instalada no comando da nação como “fascista”, autoritário ou populista.
E, de fato, o furacão Bolsonaro tem muito disso, mas apresenta elementos não-coincidentes com esses fenômenos encontradiços na política do século passado.
O fascismo do século XX era nacionalista e usava a força, o terror e o arbítrio contra a população de forma calculista, para amalgamar um rebanho e excluir dissidentes. Extraía desse amálgama sua força, com objetivo de criar uma “política nacional” frente a “inimigos internos e externos”. O “nacional” era o elemento que oferecia razão de ser a toda sorte de violência.
Era glorificado para criar uma identidade de “povo”, em nome do que se justificavam ações de Estado. Agradar à massa com melhoria de vida era necessário para manipulá-la contra os eleitos pelos fascistas a serem o anti-povo.
O populismo era essencial na dinâmica da agitação propagandística: “Ein Volk, ein Reich, ein Führer” – um povo, um Estado, um líder, em bom português. O modelo sofreu mínimas variações entre os regimes de Hitler, de Mussolini, de Franco ou de Salazar: todos mobilizavam massas na disciplina, para ressaltar o valor do povo e da autoridade na construção do “nacional”.
A prática de Bolsonaro tem quase nada disso.
Ela é profundamente autoritária apenas como expressão de um achaque intolerante; é incapaz de mobilizar massas; antes, o próprio Bolsonaro é mobilizado por uma horda virtual de bronca a tudo e todos e, de “nacional”, não entende lhufas: despreza as prioridades estratégicas do país como “coisa de esquerda” e adula o trumpismo tosco de supremacia do interesse norte-americano (“America first”).
A semelhança com fascismo, porém, está na forma, no manifesto: Bolsonaro injeta ódio no espaço público, feito os nazistas, para estigmatizar e destruir quem ele abomina.
Mas, existe “bolsonarismo” como ideologia? Parece que não, pois a tosquice do discurso não permite identificar um modo uniforme, concatenado de idealizar a realidade com valores claros. Simplesmente nega tudo o que houve antes de Bolsonaro ser ungido presidente, desqualificando ações e princípios afirmados no como “coisa de esquerdista”.
No entanto, esse discurso primário tem utilidade; há quem tire proveito dele. E quem o faz tem ideologia, tem propósitos e tem valores. A bancada evangélica, por exemplo, é um dos atores que sai claramente ganhando com o desgoverno de Bolsonaro.
No meio da barafunda de dizes e desdizes de autoridades desautorizadas, ela avança com sua pauta fundamentalista e de intolerância para com quem não compartilhe seus pontos de vista, que servem à desmobilização da população miserável insatisfeita.
Da mesma forma, certas corporações da carreira pública conseguem impor uma agenda gestada muito anteriormente a Bolsonaro, de “law and order”, que tem na transgressão – criminosa ou não – a fonte de todos os males do país e justifica, com isso, o empoderamento de atores da repressão, a expansão do direito penal e a limitação de garantias fundamentais.
Está em marcha o desmonte do estado democrático de direito como foi concebido na Constituição de 1988. Esse desmonte é radical e não para nem mesmo diante de obstáculos institucionais. O STF, por exemplo, guardião máximo da ordem jurídica posta, é alvo de permanente ataque.
Seus ministros são insultados como corrompidos, sua independência é transformada em vício. Não terão paz enquanto não se adequarem à agenda fundamentalista e de “law and order”. O garantismo é posto como fraqueza e traição à “cidadania de bem”.
Quem é acusado pelo ministério público é, por isso mesmo, já condenado e não merece qualquer defesa. Advogados são expostos como o capeta na terra, a força da degeneração: ganhariam dinheiro “sujo” de quem já fadado à desgraça por ter caído nas malhas dos justiceiros. Há, entre os ministros supremos – agora permanentes candidatos à execração pública – os que, embevecidos por serem festejados como liberais nos costumes, preferem, em matéria penal, já vestir a capa de verdugos, por acreditarem, com isso, estarem menos expostos à ira dos novos tempos.
Tornam-se incapazes de enfrentar contramajoritariamente a balbúrdia fundamentalista.
Com o esfacelamento da cidadania democrática e a emasculação de seus garantes, não há mais princípio sagrado a segurar a empáfia dos novos donos do poder. Gabam-se de suas heresias contra os tabus da correção política. Esbravejam racistas, misóginos e homofóbicos contra todos que vislumbram fracos o suficiente para não resistirem a sua fúria verbal e de fato.
E, no entanto, com tanto vitupério e tanta bazófia, são, eles, os fracos e enfraquecem o Estado que assaltam na ignorância. Nisso, estão na contramão do fascismo.
A começar pelos símbolos nacionais. A ideologia do estado-nacional é a do consenso em torno do Estado. O patriotismo é como combustível psicológico de massa para produzir esse consenso.
Símbolos nacionais como o hino, a bandeira e, no futebol, a camiseta da seleção não podem pertencer a grupo, seja ele religioso, seja político, pois essa indevida apropriação fragmentaria o sentimento de nacionalidade, enfraquecendo o consenso necessário a todo projeto nacional.
Pois bem: Bolsonaro e seus apoiadores fizeram exatamente isso – tomaram para si os símbolos nacionais, de certa forma até com conivência da justiça eleitoral, para se distinguirem de seus adversários, principalmente o PT e o PCdoB, que adotavam, como marca partidária, a bandeira vermelha.
“Nossa bandeira nunca será vermelha”, porque é “nossa” e não “deles”. Ao assim procederem, arriscaram a rejeição a esses símbolos por todos que não comungam com o fundamentalismo dessa turma. Sem dúvida, criaram ambiente de clivagem política a afetar seriamente o consenso sobre projetos nacionais.
Mas não foi só isso.
A vulgaridade com que Bolsonaro tem se havido no exercício da presidência da República tem comprometido gravemente o decoro da função e a majestade do cargo: fez-se fotografar com camiseta falsa de seu time de futebol, de chinelos sem meia, no Palácio da Alvorada, em ato de governo; tem batido boca em redes sociais com jornalistas, artistas e professores; tem usado redes sociais para fazer ameaças a categorias de servidores e, mais recentemente, até reproduzido vídeo pornográfico para achincalhar os festejos populares do carnaval.
Bolsonaro não tem se portado como se espera do magistrado mais alto da nação e, sim, como um garoto estúpido a chamar todas e todos para a briga na rua.
Com isso, infligiu indiscutível prejuízo à dignidade do cargo que ocupa, destruindo o simbolismo da função presidencial na formação da nacionalidade.
No futuro, mesmo com outro mandatário, vai ser difícil exigir respeito ao detentor do cargo, depois de tanta deslavada vulgarização do titular e isso tem consequências sérias para a fidelidade que se espera de cidadãs e cidadãos à ordem e à autoridade constituída, cerne da estatalidade.
A quem interessa tamanha destruição do sentimento nacional?
As movimentações políticas externas do governo de Bolsonaro oferecem algum indicativo para a resposta. Ao infringir flagrantemente, no trato com a crise venezuelana, o artigo 4.º da Constituição, que determina reger-se, a República Federativa do Brasil, “nas suas relações internacionais”, dentre outros, pelos princípios da “não-intervenção” e da “autodeterminação dos povos”, alinhou-se, contra toda a tradição diplomática do país, aos Estados Unidos da América do Norte de forma absolutamente acrítica.
Fez o papel de menino de recados do presidente norte-americano, desqualificando o governo legítimo eleito do Presidente Nicolás Maduro.
Não muda em nada essa constatação a circunstância de o vice-presidente general Mourão ter recusado, mais por prudência do que por convicção, o desejo yankee por uma aventura armada contra o país vizinho.
Permanece, no governo Bolsonaro, a clara postura de se arrogar a condição de julgador da legitimidade de governos estrangeiros, se estes não compartilharem sua condição subalterna aos interesses de Washington.
Nem mesmo nos anos de ditadura militar se viu tamanho desprezo pelo interesse nacional.
Washington agradece. Foi de lá dirigido o processo político que redundou no golpe parlamentar contra Dilma Rousseff, ao se criar, através da “Operação Lava-Jato”, o esgarçamento da governabilidade.
Os norte-americanos, cooperando com setores da corporação policial e do ministério público, cuidaram de destruir, junto com a indústria da construção civil e da produção petrolífera nacional, a reputação dos atores políticos. Abateram a Petrobrás e garantiram a participação altamente lucrativa de suas empresas na exploração do petróleo do pré-sal brasileiro.
Bolsonaro foi feito presidente para dar continuidade ao esquartejamento da economia nacional. Para tanto, contou com a neutralização de seu principal adversário, o ex-Presidente Lula, e o impulsionamento de mensagens mentirosas por redes sociais, em escala industrial, com custo coberto por fontes suspeitas a merecerem averiguação.
Bolsonaro é isso: o destruidor do sentimento de brasilidade, a bactéria feita para decompor o interesse nacional. Conseguiu, em meros dois meses, dizer a que veio – transformar o Brasil em “failed state”, pronto a ser explorado pela ganância hegemônica norte-americana.
Ideologia, não tem nenhuma, mas serve à dos outros, se isso for útil para lhe facilitar a missão.