Este é um trecho do livro de jornalismo que estou escrevendo, Minha Tribo: o jornalismo e os jornalistas.
Nunca entendi direito por que meu pai me contou a história abaixo. Faz mais de 30 anos, e ainda me pergunto as razões.
Especulo, apenas especulo, que ele estivesse querendo dizer ao jovem filho sonhador que se iniciava no jornalismo como as coisas são, na realidade, nas redações das grandes empresas jornalísticas.
Meu pai, Emir Nogueira, era editorialista da Folha, em meados dos anos 1960, quando irrompeu uma greve de fome entre os presos políticos de São Paulo.
O chefe da redação era Claudio Abramo.
Um certo dia, sob a tensão da greve de fome dos presos políticos, o dono do jornal, Octavio Frias de Oliveira, chama meu pai. E pede que escreva um editorial que dissesse que não havia presos políticos. Todos eram prisioneiros comuns, segundo Frias.
Fazia pouco tempo que Frias comprara o jornal de Nabantino Ramos, um intelectual que se desiludira do ramo depois que os jornalistas entraram em greve em 1961.
Paternalista – Nabantino deu dinheiro para que meus pais comprassem os móveis da casa assim que se casaram –, ele se sentiu traído pelos jornalistas da Folha.
Nabantino e Frias, então dono de uma próspera granja, tinham um amigo comum. Este amigo sugeriu a Frias que comprasse a Folha. “Dinheiro você já tem com a granja”, disse o amigo. “O jornal vai trazer status para você.”
Foi assim que Frias se tornou dono da Folha. Ele mal conhecia o jornal. Como quase toda a elite paulistana, era fascinado pelo Estado de S. Paulo, então no auge de sua influência não apenas regional – mas, sobretudo, nacional.
Frias acabou levando para dirigir a Folha exatamente um egresso do Estadão, Claudio Abramo.
Não foi uma aquisição simples. Claudio era um personagem controvertido.
Frias submeteu sua intenção ao Conselho de Redação da Folha, composto por cinco jornalistas, um dos quais meu pai.
Dois votaram a favor e dois contra. Coube a meu pai o voto decisivo. Meu pai disse sim.
Claudio acabaria liderando, depois, um movimento de renovação da Folha. E acabaria também se tornando tutor do filho de Frias, Otavio.
A Folha passou a dar espaço a colunistas progressistas, algo que levaria a problemas com o regime militar que Frias sempre apoiara.
O maior atrito se deu em torno de uma crônica de Lourenço Diaféria na qual ele escreveu que as pessoas mijavam na estátua do Duque de Caxias, patrono do Exército, ali nas vizinhanças da Folha, no centro de São Paulo.
Lourenço foi preso, e sua coluna diária saiu em branco em protesto.
Um general – Hugo Abreu — ligou para Frias e exigiu duas coisas: o fim daquele protesto sem palavras e a cabeça de Claudio.
O jornal seria fechado caso isso não ocorresse. E seria mesmo. Não era blefe.
Coragem mesmo, em época de ditadura, é dizer não para o governo. Frias disse sim. O espaço em branco da coluna interrompida de Lourenço foi preenchido e Claudio foi tirado do comando da redação.
Substituiu-o um jornalista amigo do regime, Boris Casoy, que militara no Comando de Caça aos Comunistas. (Indiretamente, Boris representou uma inovação na Folha: foi o primeiro chefe de redação incapaz de escrever. Quando Samuel Wainer morreu, em 1980, Boris teve que recorrer a meu pai para escrever uma homenagem ao grande jornalista morto, então colunista da página 2 da Folha.)
Amedrontado com a fúria telefônica do general, Frias tirou também preventivamente seu próprio nome da primeira página do jornal, na qual aparecia como diretor-responsável.
O episódio do editorial que Frias pediu a meu pai ocorreu algum tempo antes da ameaça de fechamento da Folha.
Meu pai se recusou a escrevê-lo.
Mas o editorial, no dia seguinte, estava lá. E atirava acusações pesadas contra os presos em greve de fome.
Abaixo, um trecho:
“É sabido que esses criminosos, que o
matutino O Estado de S. Paulo qualifica tendenciosamente de presos políticos, mais não são que assaltantes de bancos, sequestradores, ladrões, incendiários e assassinos, agindo, muitas vezes, com maiores requintes de perversidade que os outros, pobres-diabos, marginais da vida, para os quais o órgão em apreço julga legítimas todas as promiscuidades”.
Quem escreveu o editorial, meu pai me contou, foi Claudio Abramo.
Com certeza não foi um momento fácil para Claudio, integrante de uma dinastia de esquerda.
“Todos os dias o Claudio passava por mim, no jornal, e dizia: ‘Emir, já são três dias. Emir, já são quatro dias. Emir, já são cinco dias. E a Radha tem vários amigos lá.”
Radha era a mulher de Claudio, a segunda e definitiva, uma prima sua. O casal por causa disso deu às duas filhas, Barbara e Berenice, o sobrenome Abramo Abramo.
Com certeza não foi uma decisão fácil para Claudio escrever o editorial repulsivo.
Dizer não ao patrão em circunstâncias tão dramáticas é coisa para poucos.
Papai, modéstia à parte, era um desses poucos.
Como seria de esperar, ele foi afastado de suas funções de editorialista.
Só anos depois eu entenderia uma coisa que Sergio Pompeu, que trabalhara com meu pai na Folha e depois fora diretor da Veja, me disse quando fui procurar oportunidade na Abril, em 1980, no começo de minha carreira.
“Seu pai teria sido presidente da Folha se tivesse espinha mais flexível”, me disse ele.
Mas não tinha, e esta foi talvez a maior lição de vida e de jornalismo que tive de meu pai, Emir Macedo Nogueira.