O MELHOR LIVRO QUE LI no ano passado foi Human Smoke (Fumaça Humana), do escritor americano Nicholson Baker. Li-o na preparação das reportagens que faria sobre os 60 anos do início da Segunda Guerra Mundial. Gostei tanto que o dei ao Professor JR Guzzo numa visita que a mulher Leny e ele fizeram ao apartamento de Ranelagh Gardens, e agora vou comprar um novo exemplar porque decidi relê-lo. Bem, com recursos do grande romancista que é, Baker, num ritmo alucinante, traça a história beligerante do século XX, com foco sobretudo nas duas grandes guerras. Ele faz uma defesa ao mesmo tempo lógica e comovente dos pacifistas, derrotados no campo das coisas práticas mas epicamente vitoriosos no que São Paulo definiu em suas epístolas bíblicas como “o bom combate”. Human Smoke ajuda a entender o mundo tal como o vemos hoje, dominado pela idéia amplamente difiundida de que a solução de tudo está nas bombas. A civilização acabou, segundo Baker, quando a natureza das guerras se alterou, e os aviões começaram a despejar bombas indiscriminadamente. Morria ali o conceito de conflito resolvido entre tropas apenas, sem riscos imediatos e maiores para crianças, mulheres e velhos.
A Década do Terror, a dos anos 2000, é apenas o resultado do fim da civilização, tal como descrito por Baker. No dia 30 de outubro de 1940, o premiê britânico Winston Churchill avisou a seu gabinete: “A população civil alemã, ao redor das áreas de ataque, deve ser levada a sentir o peso da guerra”. Sabe-se o significado se ‘sentir o peso’. Era uma época em que os bombardeiros britânicos, para usar as palavras do historiador inglês Paul Johnson em Tempos Modernos, eram usados “numa grande e crescente escala para matar e assustar a população civil alemã em suas casas”. “A política iniciada por Churchill, aprovada pelo ministério, endossada pelo Parlamento e, até onde se pode julgar, aprovada entusiasticamente pela grande maioria do povo britânico — assim preenchendo todos os requisitos do processo de aquiescência de uma democracia legal — marcou um estágio crítico no declínio moral da humanidade dos nossos tempos”, escreveu Johnson. Longe de ser um esquerdista, Paul Johnson é um pensador liberal, e para ele Churchill é o maior britânico da história.
É paradoxal e cruel a lógica que aproxima, em algum momento, esse raciocínio — “a população civil deve ser levada a sentir o peso da guerra” — da estratégia terrorista do Al-Qaeda. O atentado de 11 de setembro de 2001, no qual morreram 3000 inocentes, foi “justificado” pelos líderes do Al-Qaeda exatamente como uma tentativa de levar a população civil americana a “sentir o peso da guerra”. Em certas ações dos Aliados na Segunda Guerra havia a discutível explicação de que, se os alemães haviam colocado Hitler no poder e ele cometera todas aquelas barbaridades, então não se tratava, exatamente, de inocentes. Os extremistas islâmicos usam este argumento ambíguo para explicar os atentados contra alvos ocidentais, sobretudo americanos: aquele é o povo que “colocou no poder os homens que mandam jogar bombas em nossas crianças, mulheres e velhos”, disse recentemente um líder terrorista.
Numa entrevista a um jornalista americano depois do 11 de Setembro, bin Laden evocou as bombas atômicas jogadas pelos americanos sobre o Japão em 1945 como um argumento de que “guerra é guerra”. A bomba de Hiroxima, a primeira delas, foi precedida 48 horas antes de uma advertência, feita em 720 000 panfletos jogados na cidade, em que se falava da iminente “obliteração”. O aviso não foi levado a sério, num dos maiores erros de interpretação da história, porque havia o boato de que a mãe do presidente americano Harry Truman tinha morado em Hiroxima e esta seria uma razão sentimental para que a cidade não fosse destruída. Da população de 245 000 pessoas, 100 000 morreram na hora, e outras 100 000 depois. Antes da “morte da civilização”, para retomar a tese de Nicholson Baker, uma ação dessas seria simplesmente inimaginável.
Os pacifistas estavam certos, segundo Baker. Estão certos, é bom que se acrescente. Enquanto não houver um esforço disciplinado, intenso e coletivo pelo retorno da civilização, a humanidade continuará entregue à triste tarefa de contar os mortos depois de ouvir a explosão brutal de bombas que se autojustificam e se autoperpetuam. As bombas alheias serão condenadas e as nossas justificadas, e mais e mais gente morrerá. As pessoas tendem a ser complacentes com elas mesmas e severas com os outros. Três dias antes de se matar, já completamente liquidado e entregue a sucessivas comilanças de bolos cremosos em seu bunker, Hitler confessou que vinha um arrependimento por ter sido “tão generoso”, o que o fizera perder a guerra. A maior lição de Human Smoke é que, ao contrário do que aquilo em que o mundo parece acreditar tão fanaticamente desde o fim da civilização, bombas são um problema, um problema e ainda um problema