O gênio de Torquato Neto nos ajuda a entender a atual geleia geral brasileira. Por Marcius Cortez

Atualizado em 1 de abril de 2018 às 19:28
Torquato Neto

POR MARCIUS CORTEZ

Abril 1967, dia quente. Toca o telefone, atendo. É Neil Ferreira, meu chefe na Standard Propaganda de São Paulo pedindo para subir até a sala dele, queria me apresentar a duas pessoas.

As duas pessoas eram José Carlos Capinam e Torquato Neto. Capinam nosso coleguinha da Standard Rio e Torquato, o mais novo contato do departamento de publicidade da Editora Abril.  A conversa foi animadíssima. Quando me falam que Torquato era um cara triste, não acredito. Me crivou de perguntas, desejava saber como era a propaganda em terras paulistanas, nós tínhamos a mesma idade e lá para tantas não me lembro porquê surgiu o assunto literatura de cordel.

A conversa ficou mais barulhenta quando revelei que era dono de uma senhora coleção de folhetos, entre eles o clássico “A Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum” do gigante Trava-Língua. O macio jovem Torquato Neto de olhos vivos e reflexivos abriu o sorriso escandindo sílaba por sílaba o nome do Trava Língua: Fir-mi-no Tei-xei-ra do A-ma-ral, piauiense, como ele.

A peleja de Torquato com a escrita é um picadeiro de sinfônicas atrações. Desenvolveu uma prosa solta de quem curte o prazer de estar interagindo com quem o lê.

Mesmo quando aborda temas complexos, o parceiro de Gil e Cae em tantas divinas canções  prima por um estilo envolvente onde encaixa suas ideias e discorre sobre seus fundamentos com perícia e sedução. Prioriza o factual, usa adjetivos de modo preciso, manipula com muita classe o coloquial, foge da “cagação de regra” e sem essa de palavras de ordem pentelhas.

Deixa claro que tem uma opinião e que vai trocando figurinhas com você. Mira o grande público, inclusive os loucos. Pois como gostava de afirmar: “O Brasil deve tudo aos loucos. Tudo aos seus melhores loucos. O resto é novela, sambinha e abril”.

Foi poeta, roteirista de cinema, teatrólogo, ator e letrista de 40 canções, entre elas, “Geleia Geral”, “Marginália III”, “ Louvação” , “Go back”, “Mamãe, coragem”, “Andar, andei”, “Daqui pra lá, daqui pra cá”, “Começar pelo recomeço”, “Todo dia é dia D”.  Dirigiu o filme “O Terror da Vermelha” e foi ator em “ Helô e Dirce” e “O  Vampiro Nosferato”, super 8 de Ivan Cardoso. Redigiu manifestos, cadernos com anotações pessoais, uma infinidade de cartas, diários, cadernos e deu um duro danado na imprensa.

No Jornal dos Sports, assinou uma coluna diária sobre música popular, em seguida uma rápida passada pelo Correio da Manhã (plug!), onde escreveu sobre cinema e por fim, o jornal Última Hora, com a sua Geleia Geral diária, 8 meses de prosa, agosto de 71 a março de 72, justo o ano de sua morte por suicídio no seu apartamento no Rio em 9 de novembro, dia que completava 28 anos de vida.

Esse ser tão refinado e tão misterioso tem toda a sua obra reunida nos livros “TORQUATO neto TORQUAtália (Do Lado de dentro)” e “TORQUATO neto TORQUAtália (Geleia Geral)”, dois volumes organizados por Paulo Roberto Pires e editados pela Rocco. 

Escritos sobre ele, há muita coisa. O menino de Teresina continua despertando interesse. Foi o símbolo de uma época e morreu como alguns de seus astros, Hendrix, Joplin, Morrison.  Vasculhe o Google e uma bateria de pdfs tomba sobre sua cabeça. Teses e ensaios de primeira qualidade.

Li um deles, “Um poeta na medida do impossível: trajetória de Torquato Neto” de Laura Beatriz Fonseca de Almeida, Araraquara: FCL/Laboratório Editorial. Precioso livrinho, hoje sei avaliar a dimensão da intervenção de Torquato na cultura brasileira. Recomendo também “Os Melhores Poemas de Torquato Neto”, seleção e comentários do Prof. Claudio Portella, publicado recentemente pela Global.

De outro lado, acabo de assistir o documentário “Torquato Neto: todas as horas do fim” de Eduardo Ades e Marcus Fernando, sem dúvida, outro grande aliado para o conhecimento do “biscoito fino” produzido pelo anjo tropicalista. O filme se mantém fiel à alma do poeta, as pirações que nem ele próprio entendia, a desafios que lhe custaram tanto prazer e tanto sofrimento quando diante da folha em branco.

Passados 46 anos de sua trágica morte como explicar seu fascínio, principalmente entre essa nova geração culta e intelectualizada? Arrisco uma resposta. Torquato Neto pautou-se por destruir convenções e por se superar a cada manifestação. Seu olhar primava em propor novas formas de ver a realidade.

Foi um romântico que embarcou na velha nave de fundir vida e arte, foi um severo habitante do hospício da sintaxe e um compulsivo caçador do make it new do qual falava Ezra Pound, um de seus poetas favoritos.

Não precisamos dizer que sua ausência se reflete no vazio da geleia geral brasileira atual.  Por certo, sua presença faria diferença. Seus berros demolidores acordariam mentes tenebrosas, seu punch certeiro e sua ousadia em transformar sua identidade fragmentada em fina arte.

Digo com redobrada emoção, go back meu caro feiticeiro de nascença. Esse ano as águas de março e abril vieram com a força de uma dor descomunal. É mais do que urgente decifrar os significados imprevisíveis e explodir a linguagem. Sem lenço e sem documento. E com genialidade porque é perigoso, mas também porque é divino & maravilhoso.