O dia em que toquei com o Arnaldo do Mutantes

Atualizado em 23 de novembro de 2012 às 8:23

O jornalismo me trouxe dores. Mas também me permitiu um encontro especial com um ídolo
Recomendo que esse texto seja lido com a música abaixo, no maior volume possível.

O JORNALISMO me trouxe decepções, traições, vilanias.

Mas ao mesmo tempo vieram tantas coisas boas que, se eu tivesse 20 anos agora, estaria batendo na porta de alguma empresa de jornalismo para começar tudo de novo. Especulo filosoficamente sobre o que aconteceria se o homem maduro que sou hoje recebesse para uma entrevista de emprego  o jovem idealista que fui ontem.

Bem.

Ganhei ontem um dos presentes que só o jornalismo pode trazer. Fui conversar com um de meus ídolos musicais, Arnaldo Baptista. Loki, do Arnaldo, é um disco que há décadas ouço, com prazer renovado, faixa por faixa. Sobre a obra dele no Mutantes nem preciso falar nada.

E então deu-se o seguinte. Ele tinha me citado Something como uma de suas músicas prediletas. Estamos no estúdio de Arnaldo,  e diante de nós repousam uma guitarra e um baixo.

“Arnaldo?”, digo.

“Hmmm?”

“Vamos tocar Something?”

A resposta dele foi me dar a guitarra e pegar o baixo, o instrumento com o qual ele irrompeu adolescente no mundo da música com o Mutantes.

Something in the way: Novos Mutantes?

“Você toca bem, Paulo.”

“Putz, Arnaldo, tive uma banda adolescente. Apenas não fomos para a frente. Mas nunca mais deixei de tocar. Nas casas em que morei, sempre tive alguns violões espalhados para pegar na hora que quisesse. Em Londres também tenho um violão. Toco direto. Meu tio Julio Spanó dizia que quando você toca nunca está sozinho …”

“Você toca em Londres?”

“Quer dizer. No apartamento. Um casal de vizinhos ouviu e pediu para que eu fosse lá tomar chá e cantar para eles. Minha ex-namorada disse que eles tinham se enganado, que tinham ouvido alguém tocar em outro apartamento. Mas quando fui tomar o chá eles me pediram que tocasse uma música que eu fico cantando direto. Vi que era eu mesmo. Ela não aceditou em mim, e nem eu, para falar a verdade. Mas meus vizinhos sim …”

“Que música eles pediram?”

“Putz … Something!”

“Paulo?”

“Hmm?”

“Reparou na letra?”

“Putz, canto há uns 30 anos … Sei tudo! Canto de trás para a frente essa.”

“Aquele trecho do amor crescer.”

You’re asking me will my love grow,
I don’t know, I don’t know.
Stick around, and it may show,
But I don’t know, I don’t know
.

“Reparou?”

Como um adolescente, ele aproxima a mão direita da frente de sua calça e ri.

“Será que é isso? Amor crescer é isso?”

“Eu que pensei nisso outro dia …”

Arnaldo, aos 61 anos, é o menino espirituoso da Pompéia, o bairro de São Paulo onde ele cresceu.

“Nossa, eu sempre tive uma interpretação lírica para o crescimento amoroso de Something.”

Falamos de música, de pintura (Arnaldo pinta hoje tanto quanto toca, e um de seus quadros se chama Cantor de Mambo, a música que você deve estar ouvindo agora), dos Mutantes, do disco novo que Arnaldo está fazendo, algumas de cujas faixas ouvi, não finalizadas ainda, em seu amplicador valvulado. Até de eleição falamos. E também de Rita Lee, claro, a grande e atormentada paixão de sua vida.

Na hora de me despedir, digo a ele que jamais esqueceria aquele dia, e aquela interpretação improvisada de Something, em que colidimos em certos trechos.

“É como se eu tivesse jogado futebol com o Rivelino”, digo a ele.

No carro, olho uma última vez para o grande músico, recebo dele um derradeiro sorriso, e saio feliz por vê-lo tão bem.

Este texto foi publicado no Diário do Centro do Mundo em 22 de outubro de 2010.