João Bethencourt era húngaro, nascido em Budapeste. Nelson Rodrigues era pernambucano. Ambos foram viver no Rio de Janeiro, viraram cariocas e homens do teatro. Em 1968, a vida dos dois se cruzou e disso resultou um documentário – que acreditava-se perdido, até que o historiador da UFRJ, Carlos Fico, o reencontrou no início deste ano nos Arquivos Nacionais dos Estados Unidos.
Enquanto Bethencourt, autor e diretor de comédias de costumes de sucesso entre os anos 50 e início dos 70, é esquecido lentamente, Nelson só aumenta de tamanho. Bethencourt foi na infância para o Rio com a família. O pai tinha uma casa bancária e, depois, uma fazenda. Prosperou. Bethencourt deu duro na juventude: vendeu inseticida e loção de barba no subúrbio. À noite, frequentava as festas do society no Country.
Estudou em uma escola alemã até quase entrar para a Juventude Hitlerista em 1942, quando o pai o resgatou. Acabou, depois, herdando a fazenda. “Eu era um redator com uma carreira de agrônomo nas costas”, disse. Morou nos Estados Unidos. De volta ao Brasil, entrou no Teatro Tablado. Sua peça mais bem sucedida foi O Dia Em Que Raptaram o Papa, de 1972.
Em 1968, o consulado americano patrocinou o documentário Fragmentos de Dois Escritores. Um brasileiro e um americano. João escolheu Nelson Rodrigues e o dramaturgo Edward Albee, autor de Quem Tem Medo de Virginia Woolf, entre outras.
“Falei com o Nelson e ficamos amigos para sempre. Ele me via e dizia: ‘Lá vem o João Bethencourt, o único cara que ganha dinheiro com teatro no Brasil’”. Durante duas semanas, os dois não se desgrudaram. Bethencourt seguia seu personagem da hora em que Nelson tomava mingau para a úlcera até o momento em que ia para o Maracanã. “Nelson gramava no jornalismo para sustentar o seu teatro”, conta. “Albee morava num apartamento luxuosíssimo na Quinta Avenida, com quadro do Chagall na parede e gatos persas passeando pelas salas. Pena que o filme tenha se perdido.“
Bem, não se perdeu. Graças a Fico, que tem um canal no YouTube, Brasil Recente, podemos ver Nelson Rodrigues com a mulher em seu apartamento, escrevendo na redação de O Globo com o cigarro estoura-peito ao lado da máquina de escrever (que ele batucava com os indicadores), barbeando-se e distribuindo pitacos na famosa mesa-redonda “A Grande Revista Esportiva Facit”. Em sua voz tonitruante, ele fala de si e de sua obra. “Meu sonho na vida era um veleiro, onde eu pudesse viajar, não desembarcando nunca”, conta a certa altura.
Nelson Rodrigues ajudou Bethencourt a não sumir do mapa.