O documentário “Blackfish” está ajudando a mudar a percepção sobre animais selvagens criados em cativeiro — e, no meio do caminho, jogou areia num empreendimento bilionário que ganha dinheiro com isso há quatro décadas.
Fala das orcas do Sea World, um dos maiores parques do mundo, freqüentado pelos brasileiros que invadem Orlando todo ano. A diretora Gabriela Cowperthwaite se concentra basicamente na trajetória de Tilikum, um macho capturado na Islândia aos 2 anos, em 1983, e na da treinadora Dawn Brancheau, morta por ele em 2010.
Vários adestradores dão seus depoimentos sobre como trabalharam num circo em que criaturas gigantes e inteligentes fazem piruetas para turistas. Narram a falta de informação sobre acidentes. Os casos abafados. Funcionários do Sea World aparecem mentindo sobre o tempo médio de vida dessas baleias na natureza e no confinamento (é bem mais alta no mar, ao contrário do que eles dizem) e sobre o colapso da barbatana dorsal dos machos (algo que só ocorre nos tanques).
Há imagens de ataques brutais a humanos. Não há registro disso na natureza. Tilikum está envolvido em três mortes. Ainda assim, virou o reprodutor do parque, que vende orquinhas de pelúcia às crianças nas lojinhas. Não é difícil compreender a agressividade ou imprevisibilidade desses animais, que nadam até 160 quilômetros no oceano e são obrigados a dar voltas em piscinas, ganhando como prêmio por seus números sardinhas de um balde com gelo.
Gabriela não é ativista e o tom não é panfletário. Ela esteve com as filhas gêmeas no Sea World quando as meninas tinham 4 anos. Em 2010, cobriu a morte de Dawn Brancheau. Dawn foi jogada de um lado para o outro, afogada, mastigada — sob as vistas da plateia. Gabriela não parou mais de apurar e foi descobrindo um mundo estranho e escuro.
Orcas de diferentes comunidades são obrigadas a conviver. Mãe e cria são separadas se a dinâmica entre elas não funciona. Uma das cenas mais impressionantes é o ataque a um treinador, em que uma fêmea morde seu pé direito e afunda. Fica pelo menos um minuto e volta à superfície. Solta o pé direito e pega o esquerdo. Mergulha novamente. Reemerge. O ritual se repete. O homem mantém a calma. No segundo em que se vê livre, sai nadando como um torpedo, tentando fugir. É perseguido.
O Sea World não colaborou com o documentário. Mais tarde, por causa da enorme repercussão, foi obrigado a responder. Publicou uma carta aberta com alguns pontos — todos contestados pela diretora. No fim do ano, oito dos dez artistas programados para se apresentar num evento cancelaram sua participação, entre eles Willie Nelson, Heart e Barenaked Ladies.
Um jornal de Orlando realizou uma enquete perguntando aos leitores se a percepção que tinham do lugar havia mudado. Surpreendentemente, mais da metade disse que não. Intrigado, um repórter de um site resolveu investigar a procedência desses votos. Mais de dois terços vinham de um mesmo IP — cujo domínio era seaworld.com.
Eu estive lá com meus filhos. O show de Shamu (nome padrão para todas as orcas) é competente como o de Madonna. Talvez melhor. Canção-tema envolvente e brega tocada em alto volume, uma treinadora bonita falando platitudes new age num microfone e justificando as acrobacias dos animais com uma conversa mole de que “eles fazem isso porque gostam”. Tilikum aparece no fim para dar um salto espetacular e molhar o público. A interação entre os domadores e os bichos parece genuinamente carinhosa.
Mas, ao final, fica uma sensação estranha. Um incômodo. “Blackfish” explicita por que aquilo tudo é moralmente inaceitável. “Depois de tanto tempo confinadas nesses tanques, eu pensei que as orcas houvessem encontrado uma maneira de ser uma família feliz”, diz Gabriela Cowperthwaite. “A realidade é o oposto disso. Há um conflito constante e elas não tem para onde fugir”.