Publicado originalmente no Tijolaço
Por Fernando Brito
Foi, reconheça-se, hercúleo o esforço do Ministro da Justiça em formular um decreto de indulto que, atendendo à vontade do chefe Jair Bolsonaro, pudesse escandalizar menos a sociedade com casos bárbaros sendo perdoados, ainda que certamente um ou outro fossem surgir com o tempo.
Mas quem lê o texto, publicado hoje no Diário Oficial, não precisa ir além do Artigo 2° do decreto para ver onde a “mula” jurídica manca e o que irá, com poucas chances, ao exame do Supremo Tribunal Federal.
Permitam-me antes apontar a estupidez do texto, concedendo indulto, no dia 24, a crimes cometidos até o dia 25 de dezembro de 2019, o que cria a tragicômica figura do “indulto prévio” para sentenças publicadas até a meia-noite de amanhã, uma “mancada” que mostra a desqualificação de quem o redigiu.
Mas a fragilidade do texto nem é essa, essencialmente, que pode ser revertida com uma republicação.
É que o indulto coletivo tem por princípio a não discriminação dos beneficiários senão pelas restrições legais existentes, como a dos crimes hediondos, a tortura e outros tipos penais que têm vedação expressa e anterior ao perdão presidencial. Portanto, não pode ser discricionário senão a eles – foi o que decidiu o Supremo, no caso do indulto de Temer – ou ao tempo de remissão da pena, a fração da condenação que já se tenha cumprido.
Jamais em relação a quem foi o autor do crime.
E é exatamente o que faz o decreto presidencial, ao restringir aos agentes públicos de segurança – militares, policiais, bombeiros, guardas municipais, agentes de trânsito, etc… – os efeitos da medida.
(Outro parêntesis: é um primor incluir a palavra “também” ao indulto a policiais depois de um primeiro parágrafo mera (e falsamente) humanitário, indultando quem tenha ficado paralítico, cego ou esteja em estado terminal de câncer ou Aids, únicos outros beneficiários do indulto)
Isso leva a uma situação esdrúxula e escancaradamente inconstitucional: um não-policial que tiver cometido os mesmos crimes, culposos, que um integrante das forças de segurança, recebendo a mesma pena e tendo cumprido dela tanto ou mais que aquele, não terá direito a indulto.
Isso pode se aplicar em um sem-número de situações. Por exemplo: atropelamentos de trânsito, imperícia ou negligência médicas, inc~endios como o da boate Kiss, desmoronamentos como o de Brumadinho, todos crimes culposos, mas praticados por não-policiais.
Claro que o indulto poderia ter sido modulado pelo tempo de cumprimento de pena, que está dentro do arbítrio presidencial na sua previsão constitucional – o Supremo também derrubou a tese de Luís Roberto Barroso que pretendia limitá-lo a, no mínimo, 1/3 da pena. Mas jamais segundo a natureza do autor.
Fica escancarado, se já não o estivesse pelas declarações prévias de Bolsonaro – até “personalizadas” em determinados crimes, como os do Carandiru e o de Eldorado de Carajás – que o ato de indulto tem destinação específica, destinada a privilegiar um grupo de servidores ou ex-servidores policiais que integram o santuário do bolsonarismo.
Portanto, as inúmeras exclusões providenciadas por Sérgio Moro para atenuar o vexame presidencial não têm o poder de eliminar a ilegalidade do decreto.
Dos pontos que serviram para Carmen Lúcia suspender liminarmente o decreto de indulto de Temer, a maioria se repete, ainda mais gravemente, do decreto de Bolsonaro e Moro: Temer previa um quinto da pena, Bolsonaro quer 1/6 ou zero (!!!), nos casos de excesso culposo, não exclui quem é réu em outros crimes, inclusive hediondos, nem a existência de recurso pendente de julgamento.
É difícil que, mesmo com a boa vontade que lhe tem Dias Toffoli, o ato não seja suspenso, como o de Temer foi.
Para Jair Bolsonaro o prejuízo é zero, porque o que ele pretende é o efeito de propaganda de que protege policiais envolvidos em abusos. Para Moro, mais um vexame de sabujismo de fazer o que o mestre mandou, mesmo que vá cair na Justiça.