O jeito de guerrear mudou. Por Manuel Domingos Neto

Atualizado em 24 de março de 2023 às 9:56
Disparo de míssil por artilharia anti-aérea. (Foto: Reprodução)

Por Manuel Domingos Neto

Forças armadas sempre se renovam, umas copiando as outras. Guerreiros sempre buscam o melhor jeito de bater sem se expor.

A última onda de mudanças começou na Guerra do Golfo (1990-1991), o maior festival de força e crueldade desde Hiroshima e Nagasaki. Em semanas, os Estados Unidos, encabeçando uma coalizão de 30 países, arrasou o Iraque, tudo transmitido ao vivo pela televisão, tornando o mundo um grande coliseu.

Grandes empresas exibiram a qualidade de seus produtos e depois lucraram na reconstrução do país e na exploração de seu petróleo. Os Estados Unidos disseram ao mundo que detinham a força

A União Soviética vivia seus estertores e, pela primeira vez na modernidade, apareceu a ideia de uma ordem mundial unipolar.

Mas a camisa de Alexandre da Macedônia pegou mal no presidente dos Estados Unidos: logo a derrubada das Torres Gêmeas, revelaria sua vulnerabilidade. Restou a George Bush liderar uma “guerra contra o terror” que mostrou mais do pânico do que força.

Do ponto de vista da organização dos sistemas de Defesa, um desafio se destacou: o uso combinado dos novos instrumentos, com destaque para os “aviões furtivos” (que escapam aos radares), as “bombas inteligentes” (capazes de atingir o alvo com alto grau de precisão), os veículos aéreos não tripulados (capazes de observar e atirar) e a imensurável possibilidade de obter informações por meio de satélites e radares.

As palavras dominantes nas conversas dos guerreiros passaram a ser “interoperabilidade”, “integração”, “combinação”, “sincronização” e “tempo real”. Não adiantaria dispor de instrumentos extraordinários sem saber combiná-los. Caberiam mudanças nas organizações militares e nas vinculações com os sistemas de segurança pública. A derrubada das Torres revelara falhas na inteligência policial que deixaram os militares sem capacidade de resposta em tempo hábil.

Em 2015, a estratégia militar dos Estados Unidos resumia assim as incertezas resultantes das inovações:

Tecnologias emergentes impactam o cálculo de dissuasão e de gestão de conflitos, aumentando a incerteza e comprimindo o espaço (de tempo). Por exemplo, ataques aos nossos sistemas de comunicação e detecção podem ocorrer com pouco ou nenhum aviso, alterando nossa capacidade de avaliar, coordenar, comunicar e responder. Como resultado, futuros conflitos entre os Estados podem revelar-se imprevisíveis, dispendiosos e difíceis de controlar.

VANT estadunidense. (Foto: Reprodução)

Por “tecnologias emergentes”, o documento se referia, inclusive, aos mísseis que ultrapassam diversas vezes a velocidade do som, tem inteligência própria, enganam radares e atingem com precisão alvos cada vez mais distantes. O realce às incertezas decorrentes das inovações contraditava a noção de supremacia absoluta.

Outro trecho do mesmo documento indicou a necessidade de reformas institucionais em vista da combinação de esforços em larga escala:

Esta estratégia integrada nos requer a condução de operações sincronizadas em todo o mundo, implementar reformas institucionais em casa e manter capacidades e prontidão necessárias para prevalecer em conflitos que podem diferir significativamente em escopo, escala e duração.

O atual confronto entre a Rússia e a OTAN, desenvolvido na Ucrânia, chama a atenção pela imprevisibilidade. Desde as ogivas nucleares em Cuba, em 1962, nunca se falou tanto no Armagedon. Com a miniaturização, tornou-se difícil saber onde estão, de onde podem ser lançados, onde podem chegar, quanto tempo levariam para chegar e quais seriam os estragos dos artefatos nucleares.

A forma de guerrear muda vertiginosamente quando a disputa pela hegemonia na ordem mundial se acirra, como agora. Os ianques estão acossados pela desenvoltura chinesa, os europeus perdem sua projeção multissecular, os russos reagem às tentativas de anulação de sua capacidade militar, potências intermediárias da Ásia mostram garras, a América do Sul revive a desestabilização política e cresce a probabilidade de conflagração envolvendo, rigorosamente, todos os viventes do Planeta.

Milhões de rambos superequipados e milhares de tanques potentes são ultrapassados por feras diante das telas de computadores. A guerra cibernética pode imobilizar exércitos e serviços de abastecimento e comunicação. Sem dar um tiro, um agressor habilitado provocará grandes prejuízos, pavor, sofrimentos e incontáveis perdas de vida.

Um Estado, querendo dobrar outro, tentará submetê-lo a privações cortando seus meios básicos de subsistência. Os antigos cercos terrestres e bloqueios navais ganharam cara nova. Hoje, “sanções econômicas” são expedientes guerreiros. Num mundo de interdependências, Estados tentam sufocar desafetos lhes confiscando reservas cambiais, impedindo seu comércio, negando-lhe o acesso a tecnologias, inviabilizando sua indústria e desestabilizando seus sistemas políticos.

A guerra híbrida impõe choques cognitivos, desmoralizam lideranças políticas, desfazem valores morais, desmancham regimes políticos e endoidecem sociedades ao ponto de sufragarem figuras estrambóticas, como nos Estados Unidos e no Brasil. A guerra híbrida é a que mais se aproxima da estratégia suprema: fazer o oponente se autodestruir.

É preciso cuidar da Defesa Nacional a partir de múltiplas variáveis, algumas delas previsíveis, mas ainda não delineadas. Isso implica em reformas nas Forças Armadas. Fileiras apegadas a velhos paradigmas deixarão seus mantenedores na pior.

A hecatombe espreita a humanidade. Na melhor hipótese, será desenhada uma nova ordem multipolar na qual o Brasil ou marcará posição própria ou patinará na subalternidade bisonha que caracterizou seu trajeto histórico.

​(Trecho de um livro que estou finalizando, “As Fileiras que merecemos”, no qual reúno apontamentos para uma reforma militar no Brasil)

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