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Por Moisés Mendes
Há dois casos escabrosos da pandemia à espera do bom jornalismo que não teme entrar em pântanos: 1) o escândalo da produção, propaganda e distribuição de cloroquina e 2) o lobby que atropela a Anvisa e já configura o escândalo da vacina russa.
Mostrou como Bolsonaro tenta se livrar do encalhe do remédio e provou que todos, incluindo Eduardo Pazuello, procuram até hoje vender a droga para que os militares se libertem de um problemão.
Mas essa ainda não foi a grande reportagem sobre os delitos da produção e propagação mentirosa dos milagres da cloroquina.
Bolsonaro passou do ponto, meteu os generais na história (ao forçar a produção no laboratório do Exército) e esconde agora muitos crimes já identificados.
A cloroquina é, além de um remédio que mata, quando usado como prevenção à Covid-19 (e mesmo depois da infecção), uma droga com efeitos políticos e morais perversos por estar guardada nos armários das Forças Armadas.
A Folha apurou que o Ministério da Saúde já distribuiu 5,4 milhões de comprimidos de cloroquina e 481.500 comprimidos de hidroxicloroquina.
E que o laboratório do Exército produziu 3,2 milhões de comprimidos de cloroquina, a partir de solicitações dos Ministérios da Defesa e da Saúde, gastando R$ 1,16 milhão, com nove dispensas de licitação para adquirir insumos e o princípio ativo da droga.
A conta parece que não fecha. De onde o governo tirou quase 6 milhões de comprimidos, se o Exército produziu pouco mais da metade desse total?
De onde saíram os outros 2,8 milhões de comprimidos? E por que restam apenas 328 mil comprimidos de cloroquina em estoque?
Falta saber quem tem cloroquina nos Estados e quem recomenda seu uso (a prefeitura de Porto Alegre recomenda, e o governo do Estado já distribuiu a droga na rede pública).
Falta o roteiro completo, desde as ordens de Bolsonaro e Pazuello, passando pela cadeia de produção dentro do Exército, os fornecedores de insumos (já denunciados como superfaturados), a propaganda oficial, a distribuição, até chegar à recomendação médica para uso da cloroquina. E mais as mortes sob suspeita de que foram provocadas por efeitos colaterais do remédio.
Os responsáveis por essas etapas ainda estão encobertos, com exceção da já conhecida imposição de Bolsonaro e Pazuello.
Outra pergunta, que talvez só a Justiça responda, é esta: quem ganhou dinheiro com a obsessão de Bolsonaro pela cloroquina? Por que Bolsonaro correu tantos riscos com essa obsessão?
A indagação sobre os ganhos financeiros é a mesma presente nas pressões para aprovação da fabricação da vacina russa no Brasil, o que liberaria a compra pelo governo.
Bolsonaro nunca quis saber de vacinas, e não só da chinesa. A CoronaVac era a mais atacada, por ser produzida na China e fazer parte de um acordo com João Doria.
Mas Bolsonaro atacou todas as vacinas, porque era contra a imunização, contra o isolamento, contra a máscara, contra a ciência. Ele sempre quis a gandaia geral e se livrar do encalhe de cloroquina.
Mas, de repente, o governo se apaixonou pela Sputnik. Por que essa paixão repentina? Como lobistas da direita, com vínculos com o Planalto, passaram a pressionar pela aprovação urgente da Sputnik, a ponto de provocarem reações fortes da Anvisa?
Uma reportagem profunda deve mostrar quem são os reais intermediários da Sputnik no Brasil e quem são os laranjas. Por que há políticos metidos na negociação?
Por que o principal lobista da União Química, apresentado como representante dos russos no Brasil, é o ex-deputado federal pelo PSD e ex-governador do Distrito Federal Rogério Rosso?
Ele é dono ou empregado da União Química, a empresa que pretende fabricar a vacina no Brasil, mas sem as mínimas condições de funcionamento, segundo a Anvisa?
Rosso foi escolhido porque tem proximidade com o centrão, e o centrão manda hoje no governo?
Quem no governo avalizou a pressão de Rosso para que Anvisa aprove logo a vacina?
O que levou Bolsonaro a aceitar, de uma hora para outra, uma vacina como melhor forma de combate ao vírus? E por que a vacina russa?
O jornalismo, que bebe muito de vazamentos, desde a Lava-Jato e agora na Vaza Jato, precisa ir a campo para entender o que se passa com a paixão repentina de Bolsonaro pela Sputnik.
Podem dizer que lobbies existem em todas as áreas. Mas nesse caso é um lobby que tenta atropelar a Anvisa e que merece ser observado com desconfiança, pelas peculiaridades dos personagens.
É preciso que se investigue principalmente o que mobilizou Bolsonaro, o genocida negacionista, na direção da Sputnik.
É difícil acreditar que tenha sido apenas a guerra com João Doria. É improvável que alguém acredite na adesão milagrosa de Bolsonaro à ciência. Aí tem coisa, muita coisa. O jornalismo que se mexa.