Está virando tradição. Basta chegar o Dia da Consciência Negra para a internet exumar parte da entrevista de Morgan Freeman ao “60 Minutes”.
O trecho, em que ele defende a ideia de que o racismo vai desaparecer se deixarem de falar nele, tem sido usado há algum tempo por quem rejeita a existência da discriminação contra os negros.
Nesta segunda, data em que é celebrada a morte de Zumbi dos Palmares, o nome “Morgan Freeman” ficou entre os assuntos do momento no Twitter, alavancado, em grande parte, por gente com a conversa fiada de que “somos todos humanos”.
Fernando Holiday, o vereador negro que ainda será condecorado pela Ku Klux Klan, foi um dos que invocaram o ator famoso para subestimar a existência do racismo.
Para esta claque, o percentual de 71% de negros entre as vítimas de homicídios, segundo pesquisa recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, não tem relação com o racismo estrutural.
Na cabeça deles, as diferenças raciais evaporaram com a assinatura da Lei Áurea e qualquer reivindicação dos negros ou de movimentos organizados da causa negra por representatividade e igualdade não passa de um pedido descabido.
Aos que pensam assim, deixo dois exemplos da importância do Dia da Consciência Negra. São duas histórias a princípio díspares, mas com raízes comuns no passado colonial do país. Dois homens, um negro e um branco. Um financeiramente abastado, outro nem tanto.
Diogo Cintra, ator, negro, foi abordado por assaltantes durante a madrugada no centro de São Paulo. Conseguiu correr e buscou abrigo em um terminal de ônibus. Enquanto pedia ajuda aos seguranças do local, foi alcançado pelo grupo que havia tentado roubá-lo.
Os velhacos inverteram a história e convenceram os guardas do terminal que a vítima seria o autor do roubo. O rapaz foi entregue pelos seguranças ao assaltantes, que o espancaram.
Por pouco Diogo não entrou para a estatística dos jovens negros assassinados. Caso entrasse, seu drama nem viraria notícia.
O avesso de Diogo é o jurista Ives Gandra da Silva Martins. Poucos dias antes do espancamento do ator, deu um testemunho onde altera a pirâmide social e coloca a casta dos homens héteros, cristãos e brancos como a mais discriminada entre todas as outras.
“Como modesto professor, advogado, cidadão comum e além disso branco, sinto-me discriminado e cada vez com menos espaço nesta sociedade, em terra de castas e privilégios, deste governo”, diz parte do seu manifesto.
Só fará sentido não falar da consciência negra quando homens como Gandra, besuntados de privilégios, deixarem de lamentar a falta de espaço na sociedade.
Enquanto esse momento não vem e jovens como Diogo continuarem a correr risco de vida por causa da cor da pele, um único dia no ano para celebrar a Consciência Negra será pouco, por mais que racistas enrustidos se aproveitem do Morgan Freeman para afirmar o contrário.