“O maior crime que o funk comete é deixar pretos ricos”, diz MC Carol

Atualizado em 2 de abril de 2019 às 16:41

Publicado originalmente no Brasil de Fato

MC Carol nas gravações do clipe “Mamãe da Putaria”, nova música ao lado do coletivo Heavy Baile e da funkeira Tati Quebra Barraco / Fernando Schleapfer / Divulgação

POR BRUNA CAETANO

O funk, ao longo dos anos, passou por processos reinvenção em um esforço de manter suas raízes como cultura e expressão da realidade das favelas do Brasil em meio a marginalização. O Baile da Gaiola, maior baile de favela do Rio de Janeiro, é famoso pelo fenômeno da vertente 150 BPM, e está ameaçado pelas operações policiais e pela condenação do criador, Renna Santos da Silva, 25, o DJ Rennan da Penha. O Brasil de Fato conversou com a cantora MC Carol sobre a tentativa de criminalização do ritmo e suas experiências pessoais com a violência policial.

Para ativistas e artistas, a prisão de Rennan tem um caráter racista e escancara uma tentativa de criminalizar a produção cultural das favelas. Alguns dos argumentos para a condenação é de que as músicas do DJ fazem apologia ao tráfico, e de que ele seria “olheiro”, tendo a função de avisar quando a polícia subia o morro. Rennan foi condenado recentemente por associação ao tráfico de drogas pelo Tribunal de Justiça do RJ e teve seu habeas corpus negado no último dia 25, pela ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber. Ele havia sido inocentado em primeira instância por falta de provas

O funk passou não só a extrapolar as barreiras socioeconômicas ao ser obrigatório em festas da classe média brasileira, mas também a gerar emprego em uma rede de funções necessárias para que as produções, shows e bailes aconteçam. O Baile da Gaiola é um dos maiores exemplos disso, e chega a reunir 25 mil pessoas no Complexo da Penha, zona norte do Rio.

“Eu costumo dizer que o funk salvou a minha vida, e o funk vem salvando vidas. Ele não está só salvado vidas, ele está enriquecendo pessoas. E quais são as pessoas que ele está enriquecendo? É o preto, o pobre, o favelado, a mulher. A mulher totalmente fora dos padrões que canta falando músicas feministas, no meu caso. Isso não agrada. O funk não agrada. O maior crime que o funk comete é deixar pretos ricos, porque droga tem em todo lugar, tem no Rock in Rio, no Lollapalooza, em boates, todos os lugares”, dispara.

https://www.youtube.com/watch?v=RgVkLs3DJeg

Se por um lado o ritmo e os bailes de favela passam por um momento de ascensão, por outro, a repressão às festas nos morros e aos artistas também tem crescido. Enquanto circula no Facebook e em sites de notícias do Rio de Janeiro a manchete “Witzel promete exonerar Comandante que permitir baile de favela”, é cada vez mais comuns que as festas sejam interrompidas por tiros em operações da Polícia Militar. Na manhã dia 10 de março, o show do projeto de rap Poesia Acústica, na Gaiola, foi interrompido por ação do Batalhão de Choque.Com a polêmica, foi criado o site #DeixaEuDançar, que denuncia das arbitrariedades da justiça na condenação do DJ Rennan.

“Sinceramente, acabando com o Baile da Gaiola e prendendo MCs o funk não vai deixar de crescer. O funk já cresceu, e já quebrou a fronteira que existia de que MC só canta em favela. Os MCs estão rodando o Brasil e o mundo.” destaca Carol.

A MC, conhecida por trazer em suas músicas questões políticas, sociais e feministas, também conta sobre os processos de ataque, assédio e violência estatal pelo qual tem passado. Ao fim da entrevista, Carol traz um relato sobre quando ficou sob a mira e ameaça de 20 fuzis de agentes do Estado no fim do mês de abril de 2018. Ela atribui o achaque ao fato de que havia recentemente lançado uma música em homenagem à Marielle Franco e era candidata à deputada estadual pelo PCdoB.

“Eu me arrependo muito de ter me candidatado, muito mesmo. Não é para qualquer um, é perigoso. Quando você é negra, favelada, ainda trabalha com funk, é muito perigoso se candidatar”, afirma. Confira a íntegra.

Brasil de Fato: Você está no funk há algum tempo e essa criminalização não é de hoje. Notou alguma diferença da forma que ele é tratado entre quando você começou e agora?

MC Carol: O funk sempre foi perseguido. E era muito pior na época que o MC Catra e a Tati Quebra Barraco começaram. Naquela época, o funkeiro era bandido. Nessa época, eu era criança e não podia ouvir nada de funk. A batida é discriminada, o que a gente fala é discriminado. Mas tudo o que a gente fala, outras músicas falam, mas é só o funk que é perseguido e discriminado.

Na época que eu comecei, em 2010, 2011, já não era tão assim. Não era igual antigamente, quando os funkeiros eram vistos como bandidos. De lá pra cá, veio melhorando muito. Por exemplo, quando eu comecei, eu só cantava em comunidade, e nunca passou pela minha cabeça cantar em outro local além da comunidade, mas por volta de 2015 eu já comecei a ser chamada para fazer aniversário de 15 anos e shows em boates. Em 2016, eu fiz minha primeira viagem internacional, que era uma coisa que eu nunca imaginava. Eu nunca imaginava cantar meu funk nos Estados Unidos, aí fui duas vezes para lá. Fui uma vez para a Alemanha, agora em abril estou indo para a Alemanha e Escócia. O funk ganhou uma proporção muito grande, não estava sendo tão perseguido igual antigamente, mas agora está acontecendo isso.]

E você atribuiu isso ao novo clima político do país? Aos governantes eleitos como Jair Bolsonaro e Wilson Witzel, que simbolizam a ascensão da extrema direita?

Agora está voltando essa nova era, com esse novo governo. Eles dizem que o funk tem vínculo com o tráfico, com apologia, só que não é porque está rolando um baile funk em uma comunidade que o funk tem a ver com a droga que rola. Eu costumo dizer que o funk salvou a minha vida, e o funk vem salvando vidas. Ele não está só salvado vidas, ele está enriquecendo pessoas. E quais são as pessoas que ele está enriquecendo? É o preto, o pobre, o favelado, a mulher. A mulher totalmente fora dos padrões que canta falando músicas feministas, no meu caso. Isso não agrada. O funk não agrada. O maior crime que o funk comete é deixar pretos ricos, porque droga tem em todo lugar, tem no Rock in Rio, no Lollapalooza, em boates, todos os lugares.

Dentro do morro sempre tem forró e pagode, você acha que nesses lugares não estão rolando droga? Todo lugar tem. Eles querem vincular uma coisa que não tem nada a ver com a outra. A gente está relatando histórias no que a gente canta, coisas que acontecem na comunidade. São um milhão de letras, são um milhão de histórias. E as mesmas coisas que a gente canta nos funks são as mesmas coisas que passam nos filmes brasileiros. Aí minha pergunta é: se a gente cantando o que acontece na comunidade, da troca de tiro, do arrego, do bandido que ficou rico sendo bandido, do trabalhador que trabalha dia e noite e não tem nada porque o governo não faz nada para ajudar ninguém, a gente está fazendo apologia?

Então por que os diretores de cinema, de novela não são chamados para depor e não são presos por apologia ao crime se eles estão relatando as mesmas histórias? As histórias que a gente canta no funk vêm em livros, em cinema, em filmes, em novelas, séries, músicas. Mas por que só o funkeiro preto, favelado, é preso? Por que só o Rennan foi condenado, atualmente? É isso que não dá para entender. Acho que o único crime que a gente comete é estar enriquecendo mesmo.

Como você vê o tratamento do funk por parte da polícia, do governo e das Unidades de Polícia Pacificadoras? Qual você acha que é o real motivo das operações que dizem querer “acabar com o tráfico”?

Essa perseguição não é da polícia, é perseguição do governo. A polícia é só um pau mandado do governo. Se receber uma ordem para parar, a polícia vai parar. Se eles quisessem combater o tráfico já tinha combatido há muitos anos. Quanto de dinheiro o Estado gastou nas UPPs? Quantas pessoas morreram nas operações para colocar UPPs? E não adiantou de nada. O Estado é conivente com o tráfico, com as drogas, e disso todo mundo sabe. Se quisessem acabar com as drogas, já tinham acabado ainda na época das UPPs. Colocaram para nada, para fingir, e acabaram só acabando com os bailes, e não com as drogas e armas. Rola com ou sem UPP. É muito estranho tudo isso. Colocar um monte de UPP, gastar milhões, e não acabar com o tráfico que é o mais importante, mas com o funk eles querem acabar.

O funk gerou empregos para muita gente, não só para o MC, mas para os DJs, o cara que dirige, o cara que cuida dos equipamentos, do palco, da luz. Gerou muito emprego, ajudou muita gente. Quando eu ganho dinheiro, não sou só eu que estou ganhando dinheiro, não estou só me ajudando, tem toda uma coisa atrás de mim. Tem as pessoas que eu ajudo, as pessoas que trabalham na minha casa, na minha vida pessoal e profissional. O funk ajudou e ajuda muita gente.]

O que significa o Baile da Gaiola para o cenário carioca?

[Significa o que todo baile significa: empregos, o fortalecimento do funk, e sinceramente, acabando com o Baile da Gaiola e prendendo MCs o funk não vai deixar de crescer. O funk já cresceu, e já quebrou a fronteira que existia de que MC só canta em favela. Os MCs estão rodando o Brasil e o mundo. Os garotos dos passinhos estão indo para Paris, para os EUA, e o funk é isso. O Rennan acabou de voltar de Dubai, tem alguns MCs em Dubai.

Nenhum governo vai conseguir derrubar o funk, ninguém tem mais o poder de acabar com o funk. Só se voltar a ditadura e sei lá, começar a matar, aí ninguém vai ser louco de botar a boca em um microfone, com medo de ser preso, morto, torturado. Mas eu tenho muita fé em Deus que isso não vai acontecer, apesar de a gente ter essa pessoa, com essa cabeça, no poder. Mas é isso, se Deus quiser ele vai fazer a mesma coisa que ele fez quando era deputado: nada.]

Você postou um texto sobre a criminalização do funk, dos pretos e da favela, e conta um episódio que aconteceu com você de violência policial e racismo. Você pode contar para a gente essa história com mais detalhes?

A violência policial que sofri foi no ano passado, em abril, foi após eu sofrer uma tentativa de feminicídio. Eu imaginava passar por isso assim que eu lancei a música “Delação Premiada”, porque falava da violência policial, mas não aconteceu. Sempre fui parada, perto da minha casa rolava blitz de manhã e de tarde, pediam meus documentos, e às vezes, a noite, pediam para revistar o carro, sempre tudo rolou de boa. Também acontecia em viagens de estrada, a polícia federal parava a gente, revistava os equipamentos de trabalho, as malas e tal, mas sempre foi bem de boa, e não tem porquê não ser. Se você está com seu documento, o carro está certo, está tudo certo, não tem droga nem nada, não tem porquê não ser.

Mas, depois que a Marielle foi morta, em março, eu lancei a música “Marielle Franco”, e me lancei candidata. Aí, no dia 4 de abril, sofri tentativa de feminicídio, e no fim de abril tinham alguns amigos na minha casa, que estavam dormindo comigo porque eu estava ainda com muito medo. A gente foi fazer um lanche na rua por volta de uma da manhã, e eu passei por uma viatura, e quando eu passei o policial olhou para mim, e ele veio seguindo meu carro. O sinal fechou, e os meninos que estavam comigo falaram: “fura o sinal”, mas eu falei: “não tem ninguém errado, vou furar o sinal para que?”

Paramos no sinal, eles também, um pouco atrás da gente, o sinal abriu e fomos tranquilos. Um pouco mais a frente, tinha uns 20 policiais, por aí, tinha uns 20 fuzis apontados. Achei que tinha bandido no carro da frente. Eles estavam andando no meio da rua, e estavam muito agressivos, como se fosse uma operação, e até falei para os meninos: “Caralho, deve ter bandido nesse carro aí da frente”. Quando eles passaram pelo carro da frente que eu percebi que era comigo.

Eu só tremi, não sabia o que fazer nem o que falar. Uma gritaria, parecia uma cena de filme, parecia que eu era narcotraficante. Eu fiquei muito nervosa. Nunca tinha ficado assim. As pessoas falam que quem não deve não teme, mas teme, e muita gente morre dessa forma, porque a polícia entra no morro dessa forma, e às vezes uma criança, um adolescente, fica com medo, que é normal, aí corre e leva um tiro na cabeça. Isso acontece muito, e eu nunca tinha passado por isso. Fiquei em estado de choque. Muita gritaria, muito palavrão.

Alguns falavam para levantar a mão, aí levantei a mão, outros mandavam eu sair do carro. O vidro do carro estava fechado, e eu falei: “Vou abaixar uma mão, vou abaixar uma mão para abrir o carro”. Abri o carro e falei com a mão para cima: “Está tudo bem, meu carro não é roubado, o documento do carro e o meu documento estão no porta-luvas”. Mas eles, nem aí, falando: “Não estou te perguntando nada, sua filha da puta, sua piranha, sua vagabunda”. Me chamaram de tudo isso. Eu estava oferecendo meu documento o tempo todo. Mandaram eu deitar no chão, eu falei: “Para que isso? Não tem bandido aqui, não tem traficante aqui, não tem nada no carro, está todo mundo com documento” e eles: “Não estou te perguntando nada, porra!”. Tinha 20 ou mais fuzis, era Exército junto com a PMERJ.

Me botaram deitada no meio do trânsito, pararam o trânsito e começou a aglomerar um monte de carro. Um cara desceu do carro e começou a chamar a gente de bandido, xingar, queria chutar a gente, ameaçou chutar meu irmão que também estava comigo. Quando liberaram a gente eu entrei no carro muito trêmula, muito nervosa, sem entender o que estava acontecendo. Eles quase não entrevistaram o carro, só deram uma olhada na mala, e eu não lembro se pegaram os documentos. Fizeram aquela graça toda e depois liberaram. Quando liberaram, um deles cantou uma música minha e eu entendi que eles me conheciam. Foi aí que eu entendi.

Falei: “Cara, vou na corregedoria, todo mundo de acordo?”, todo mundo estava chocado mas concordaram. Fui em direção da corregedoria, no centro de Niterói. Quando olhei pela janela, estavam todos os carros me seguindo. Tinha uma rua que se eu fosse direto eu ia sentido delegacia, e se eu quebrasse na outra rua sentido praia de Icaraí era outra coisa. Fui para Icaraí porque tinha apartamentos com câmera na porta. Fui sentido a praia, estacionei de frente para um prédio e fiquei no lugar que tinha luz. Fiquei ali visível, eu e meus amigos saímos do carro e ficamos ali.

Eles passaram perto da gente olhando, porque eram aqueles carros abertos em cima. Do exército, a maioria estava encapuzado. Passaram, fizeram a volta, passaram de novo. Ficamos uma hora em pé, com medo de ir para casa. Aterrorizaram a gente, pareciam bandidos. O terror que colocaram na gente… pareciam bandidos. Ainda mais com a cara coberta, eu nunca tinha visto aquilo. Eu não sabia que eles podiam colocar touca na cara, fiquei aterrorizada com isso.

Mas, depois que eu cheguei em casa, relaxei, eu entendi que aquela parada estava acontecendo comigo não porque eu sou negra, não era porque eu canto funk, não acho que era isso. Eu estou no funk há oito anos, e todo mundo escreveu: “Bem feito, você não canta essas coisas? Isso que acontece com quem canta funk”. Eu fiquei pensando: eu canto funk há oito anos, e isso nunca aconteceu comigo. Por que está acontecendo agora? E foi justamente na época da política, justamente na época que me lancei candidata. Foi justamente na época que eu lancei a música da Marielle. Então assim, eu tenho certeza que foi por causa de política.

Post de MC Carol à época do assassinato de Marielle Franco. (Foto: Instagram/Reprodução)

Como foi essa época?

Eu acho que fui uma das pessoas mais atacadas na época da eleição. Eu fui muito atacada. Muita fake news. Eu tinha medo de andar com meu próprio carro e quando precisava fazer algo na rua eu pedia um Uber. Me aconselharam isso, porque podia acontecer de colocarem algo no meu carro e me forjarem. Foi uma época bem sombria.

Eu me arrependo muito de ter me candidatado. Foi uma época muito pesada. Acho que foi a época mais pesada da minha vida, porque misturou muita coisa.

Primeiro de tudo, eu perdi um amiguinho meu, chamado Zé, eu postei sobre ele, ele levou um tiro na cabeça. Ele tinha 13 anos e era empacotador de supermercado em Niterói, no Largo da Batalha, e ele estava descendo a comunidade quando teve uma operação. Levou um tiro na cabeça e ficou por isso mesmo, ninguém soube disso, não saiu no jornal nem nada. Isso foi no dia primeiro de dezembro, no dia que eu tive que viajar para os Estados Unidos para fazer show.

No dia 2, eu perdi outro amigo, já estava lá nos EUA. No dia 14 de março, a gente perdeu a Marielle, no dia 4 de abril eu sofri uma tentativa de feminicídio, e no fim de abril aconteceu isso comigo. Foi uma coisa atrás da outra. Depois disso, descubro que a pessoa que tentou me matar ia ganhar liberdade. Foi uma coisa atrás da outra, foi uma época muito pesada na minha vida. Eu me arrependo muito de ter me candidatado, muito mesmo. Não é para qualquer um, é perigoso. Quando você é negra, favelada, ainda trabalha com funk, é muito perigoso se candidatar.