Radicados inicialmente em Paris nos anos 90, o brasileiro André Curti e o angolano Arthur Ribeiro formam a Cie. Dos à Deux, que vem se consolidando como uma das mais importantes companhias de teatro gestual do cenário contemporâneo mundial.
Hoje divididos entre a França e o Rio de Janeiro, lotam todas da seções de seus espetáculos. Censurados pelo governo Bolsonaro em 2019, no espetáculo “Gritos”, voltaram aos palcos com um novo espetáculo, “Enquanto você voava, eu criava raizes“ — montagem premiada com dois prêmios Shell e temporadas esgotadas no Rio de Janeiro, São Paulo e festival de Curitiba. A montagem também foi a grande vencedora do 17º Prêmio APTR, da Associação dos Produtores de Teatro. Levou a melhor nas categorias Espetáculo, Música (para Federico Puppi, que também ganhou por Ficções) e Cenografia.
Estão com malas prontas para nova turnê na Europa, começando pela França, no festival de Avignon. Entre um ensaio e um aeroporto, concederam esta entrevista ao DCM:
Diário do Centro do Mundo: Como foi para vocês passar os últimos 4 anos assombrados por Bolsonaro e a Covid 19?
Arthur Ribeiro: Fomos um dos primeiros grupos a ser censurados na era Bolsonaro, com o espetáculo “Gritos”, que já estava em cartaz há mais de três anos em grande itinerância pelo Brasil. Não havia nada de político contra o governo diretamente, a não ser pelo fato de falarmos da causa trans, causa gay e seus assassinatos, além de sermos o país número 1 no mundo em homicídios do gênero. Por essa causa fomos censurados. Era o primeiro alerta. Logo no início já sentimos que seria complicado, mas não achamos que os efeitos seriam tão rápidos e logo na sequência entramos na pandemia, então se misturam muito os “vírus” de Bolsonaro e da Covid-19.
Nosso confinamento um laboratório gerou esse novo espetáculo, “Enquanto você voava eu criava raizes“. Fizemos desse longo período um processo que pudéssemos gestar nosso tema. Isso nos livrou de uma loucura coletiva. Bolsonaro detonou o país, mas ao mesmo tempo fortaleceu em várias áreas as minorias. Como é o caso que estamos vendo: todo o movimento preto, que está vindo forte. Em um momento de tanta fragilidade, quando vimos que éramos realmente o conto dos 3 porquinhos, que com um assoprar tudo se foi, vimos concretamente na pele que nada estava construído, nada enraizado, tudo meio cambaleando e, a qualquer momento, com um sopro tudo se foi…
Conte um pouco sobre a censura que a Cie Dos à Deux sofreu.
André Curti: Sofremos uma censura velada das instituições, que começou na Caixa Econômica Cultural. Estávamos fazendo um repertório com três espetáculos, e o único que eles tiraram foi o “Gritos”, sem nenhuma explicação ou justificativa.
Mais de 20 anos de estrada, centenas de palcos ao redor do mundo, que sentimentos não foram estimulados, que magia fornece vitalidade à Cie. Dos à Deux?
Passamos mais de 20 anos percorrendo mais de 50 países no mundo. Achamos que a magia que fornece a vitalidade a Cie. Dos à Deux é a troca, o encontro com o público. Não somente no encontro público enquanto espectadores, mas também em forma de workshops e debates. O que pudemos fazer nestes países todos foram encontros com outros artistas e amadores, com públicos distintos, trocas e justamente elas que nos impulsionam até hoje.
Este novo espetáculo tem uma leitura mais multimídia, um novo momento e modelo de espetáculo. As duas almas atormentadas do primeiro espetáculo da Cia hoje viajam em céu de brigadeiro?
André Curti: Sim, este espetáculo tem outra linguagem completamente diferente, em que não nos preocupamos em contar uma história, de não ter uma narrativa. Um espetáculo que nos levou para outro caminho e estamos muito felizes por ele.
Eu nunca estabeleci uma relação com os primeiros personagens de Dos à Deux, lá do começo, acho que são nossas almas atormentadas mesmo que nos perseguem esse tempo todo e que levam a criar coisas que nos tocam profundamente, que nos desestabilizam na vida completamente, para a gente poder botar no papel, no palco: nunca tinha feito essa relação com os dois personagens, mas por que não?!
Que lições e como se pode reconstruir a cultura no Brasil a partir de um olhar distanciado, se comparado com as leis francesas de fomento cultural?
Arthur Ribeiro: Acho que a grande diferença entre França e Brasil já se dá pela diferença que lá a cultura tem 1% do orçamento global do país, com um ministério da cultura que funciona há muito tempo e financia não só os museus, mas também vários teatros. Existem mais de 550 teatros municipais pela França, por volta de quarenta centros dramáticos e coreográficos.
Existem poucos editais para projetos de itinerância no Brasil, que não conseguem abranger a totalidade do país. Isto é um assunto que está em pauta, eu mesmo já participei de várias reuniões, até com deputados, sobre criar uma lei que obriga cada cidade a programar no mínimo de 6 a 10 espetáculos de artes cênicas em cada uma dessas cidades, que seja subsidiado. Isso faria com que a circulação acontecesse nos eixos contraditórios: sudeste vai para o nordeste e vice-versa. Na França esse assunto foi resolvido de forma inteligente há muito tempo. Se a gente no Brasil conseguisse chegar a 10% dessa política cultural, nos aproximaríamos de políticas culturais do nível europeu .
Tom Jobim dizia que “viver no Brasil é uma merda, mas é bom”. Expliquem um pouco essa divisão geográfica entre Paris e Rio de Janeiro para o desenvolvimento dos projetos e sonhos.
André Curti: A grande questão de viver entre dois países é que você fica dividido, um olho lá, um coração aqui. Uma vez que você é imigrante, você está dividido para sempre. Eu particularmente (Arthur) diria: “É uma merda”, no sentido de tudo isso que estamos concluindo, ainda há tudo por fazer. Talvez justamente por isso seja instigante fazer parte desse movimento, um artista em um país onde você está lutando para que algo se enraize, algo aconteça e seja perene. Ao contrário da França, onde tudo está estabelecido, mesmo que haja debates importantes de sociedade e políticos. Eu particularmente me sinto apátrida por todos os lugares onde percorri na minha vida.
Sou nascido em Angola, criado por pais portugueses no Brasil, fui para a França e volto para cá. Então esse olhar apátrida permanece como uma nostalgia eterna de nunca me sentir inteiramente de um lugar só. Mas estar aqui e agora, depois de tudo que a gente viveu tem todo seu sentido, é uma terra de “guerrilha” e que estimula um artista a criar e continuar, para sair de sua zona de conforto.
André: Uma merda, mas principalmente quando decidimos voltar para o Brasil, quando decidimos ficar mais por aqui, teve o golpe da Dilma, exatamente no momento que voltamos. Nós pegamos o heavy metal da coisa, chegamos achando: “Porra, vai ser maravilhoso o Brasil” e só fomos recebendo porrada.
Acabamos criando o espetáculo “Gritos”, que tem a força que tem e que foi censurado justamente por isso. E aí foi ladeira abaixo… É isso, como Arthur disse, ser artista nesse país é uma resistência que faz a gente avançar, que dá tesão de lutar e lutar pelo nosso país e nossa cultura. Estamos agora entrando em um momento de esperança.