O circuito das conferências milionárias se insere nos excessos que dominaram o mundo nos últimos trinta anos.
Dias atrás, ao comentar uma entrevista que a revista Época fizera com FHC, notei que os entrevistadores poderiam ter tirado mais dele.
Foram demasiadamente amigos, no sentido jornalístico. Em muitos momentos, aquela pareceu uma conversa de professor e alunos embevecidos.
A mesma impressão tive, agora, ao ler a entrevista que o jornal Valor fez com Lula. Os entrevistadores poderiam ter tirado mais dele, igualmente.
A mídia brasileira não tem excelência em entrevista. Em geral, elas pecam por uma cordialidade excessiva cujo preço é pago pelo leitor.
É possível que seja reflexo da índole cordial dos brasileiros.
Uma certa dose de tensão e mesmo enfrentamento é vital para que a entrevista seja, realmente, boa.
A maior escola de entrevistas do mundo foi, na Era do Papel, décadas atrás, a Playboy americana.
Sempre recomendei aos jornalistas que trabalharam comigo que as lessem como fonte de aprendizado.
Lembro uma entrevista particularmente boa, com o então jovem de Niro. A certa altura, o entrevistador notou: “Nesse momento, de Niro jogou o gravador na parede.”
O jornalista o tirara da zona de conforto.
Importante: não estou pregando uma guerra entre entrevistado e entrevistador. O que defendo é uma conversa adulta, entre iguais. Nem tiros e nem flores.
No caso de Lula, os entrevistadores não objetaram nada em relação às controvertidas viagens à África pagas por empreiteiras.
No próprio Diário, vê-se quanto este tema é complexo. Na enquete ainda em curso, à esquerda da página principal, a maioria das pessoas considera ‘reprováveis’ as viagens. É a primeira vez que, numa enquete no Diário, Lula é questionado no campo da ética.
Ao Valor, ele disse, primeiro, que não sabia que lhe pagariam tanto para fazer palestras. Ora, cachês de ex-presidentes em palestras são sabidamente estratosféricos, na casa de 100 000 ou 150 000 dólares a hora.
As palestras milionárias de FHC pós-presidência foram intensamente noticiadas. A revista Piauí acompanhou FHC numa viagem e fez um registro primoroso, em que falava até da cor das malas – vermelhas, para não serem confundidas na esteira da bagagem nos aeroportos.
Reagan, Thatcher, Clinton, Blair, todos eles fizeram fortuna no circuito das palestras. Não há dúvida de que Lula não está em grande companhia aí. (No Brasil, Jabor, Merval e Míriam Leitão são alguns dos campeões de palestras.)
No futebol, apareceu a figura corruptora do agente, o personagem que trata de chegar primeiro a todo jogador com potencial de trazer dinheiro a ele.
Nas palestras, é o mesmo.
Os jornalistas do Valor não perguntaram qual é o valor do cachê. Não perguntaram o que Lula está fazendo com o dinheiro: investindo em quê?
É jornalismo. Ou devia ser.
A desinformação é tanta, em relação ao tema, que uma liderança do PT chegou a dizer que Lula viajara com as despesas pagas porque “não tinha recursos” para bancar as viagens.
Um único cachê de personalidades como Lula rende cerca de 200 000 reais. Num dia, em uma ou duas horas.
Um palestrante pode fazer duas sessões num dia, se quiser. É só agendar ambas na mesma cidade.
As palestras milionárias são um fenômeno relativamente novo.
Truman, saído da presidência dos Estados Unidos, enfrentou sérias dificuldades financeiras. Veio dali o sistema de pensões para ex-presidentes americanos.
Os cachês absurdos se enquadram na atmosfera de excessos dos últimos trinta anos, da chamada Era do 1%.
Os bônus dos executivos alçaram vôos. Os salários dos jogadores de futebol e de outros atletas idem. Empresários como Bill Gates acumularam fortunas de 100 bilhões de dólares, muito acima do que mereciam.
Nesse quadro, os cachês de palestrantes também se tornaram milionários.
Para reajustar o mundo tão desigual da Era do 1%, muitas coisas terão que ser revistas – e os cachês de palestras também.
Os entrevistadores do Valor perderam uma chance de ouvir a opinião de Lula sobre isso.