Florinda Bulcão é a cearense que, sem querer, se tornou veneziana para sempre. Aquele ex-colunista de Veja e atual comentarista do programa Manhattan Connection da Globo News é apenas um imigrante anônimo no nordeste italiano.
Mesmo que tenha passaporte italiano, seus vizinhos distinguem seu sotaque brasileiro com a mesma facilidade com que nós distinguimos seu sotaque italiano quando ele diz que no nordeste daqui o voto é de “cabrresssto”.
O imigrante italiano nordestino acha que os nordestinos daqui, como Florinda, não sabem votar. Será que ele sabe? Será que os nordestinos de lá sabem?
Vamos dar uma espiada nas urnas deles. Veneza está sem prefeito e atualmente é governada por um interventor. O prefeito Giorgio Orsoni renunciou após ser preso por corrupção e toda a câmera de vereadores foi dissolvida. Foram convocadas novas eleições que serão realizadas. Orsoni é do PD, uma espécie de PPS italiano, herdeiro dos escombros do histórico Partido Comunista Italiano. É acusado ter ter recebido propina do consórcio contratado para executar as obras de c ontenção das marés da laguna que ameaçam a existência da cidade.
Exatamente como temia Florinda no filme Anônimo Veneziano, que a tornou famosa no cinema italiano. Amiga de cineastas brasileiros como Glauber Rocha e Cacá Diegues, a jovem Florinda foi se aventurar em Paris e trabalhou até na Varig, antes de ser descoberta por ninguém menos do que Lucchino Visconti, por acaso diretor de… Morte em Veneza!
Por sua vez, o presidente da região do Veneto – cuja capital é Veneza – é Luca Zaia, eleito pela Liga do Norte, o partido xenófobo de direita que gostaria de expulsar todos os imigrantes do nordeste italiano. Ainda que os nordestinos italianos sejam a maioria dos imigrantes italianos e seus descendentes no Brasil. Como o próprio avô do presidente do Veneto, nascido no Brasil em 1896, que imigrou na Itália e depois nos EUA, antes de retornar à Itália. Ou mesmo o bisavô do veneziano anônimo, outro pobre imigrante do nordeste italiano que viveu em Pindorama, no interior de São Paulo.
Mais famoso no sul do Brasil, o veneziano exilado em Manhattan é o tradutor de As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino. O autor nasceu em Cuba, retornou à Itália com os pais ainda bebê, combateu o fascismo e foi militante do PCI durante boa parte de sua vida, até se desligar do partido em 1956. Em As Cidades Invisíveis ele converte Marco Polo numa espécie de Sherazade – a verdadeira, das Mil e Uma Noites – que deve contar ao imperador oriental Kubai Khan tudo que viu em seu reino, para que o próprio imperador pudesse conhecer melhor os seus domínios. Se dependêssemos do tradutor para conhecer o reino do Brasil, teríamos um conto para a Sheherazade do SBT.
Calvino descreve 55 cidades imaginárias, todas com nomes de mulher, cada uma com sua beleza, talentos, alegrias e defeitos, reunidas em grupos conforme suas idiossincrasias. Entre elas poderia estar Uruburetama – a cidade natal da veneziana famosa -, a paulista Pindorama onde se refugiaram os ancestrais do veneziano anônimo, e a própria Veneza, essa nave ancestral encalhada num mar de lama de verdade e ameaçada de afundar literalmente.
Enquanto aqui nós aguardamos um plebiscito ou referendo pela reforma política, os venezianos preparam a eleição de um novo prefeito e de um novo tom de sirene para indicar mais uma altura de maré, além das quatro já existentes. Você pode conhecer os candidatos sonoros aqui.
A bordo dessa nave fantástica que afunda na maré alta da corrupção, o único mar de lama que o anônimo nordestino consegue vislumbrar está num reino ao sul do equador. Kubai Khan teve muito mais sorte ao ser atendido pelo Polo de Calvino.
James Harrington preferiu ouvir Janotti – o principal historiador da República de São Marcos – ao imaginar a sua república ideal de Oceana, à semelhança de Veneza.
Na ausência de Polo ou Janotti – convém conhece-la sempre em boa companhia:
http://youtu.be/5SzLOLI74m0