O patriota do caminhão e a estrutura psicológica do fascismo

Atualizado em 26 de novembro de 2022 às 11:06
O presidente Jair Bolsonaro (PL) – Foto: Evaristo Sá/AFP

Por Tainá Machado Vargas

No texto de hoje, abordarei como a paixão do bolsonarismo lastimou a ascensão de uma forma prepotente, e muito perigosa, de embrutecimento: a morte em vida produzida pelo fascismo. O bolsonarismo é uma repetição pós-moderna de uma consciência orgulhosa, inundada de si e bastante inquebrantável em suas práticas desonestas do cotidiano.

A ignorância convicta, há anos, tem se refeito apesar da realidade. E se recusa a justificar os motivos que sustentam ortodoxias de extrema-direita, como intérpretes de um poderoso álibi ideológico anti-esquerda.

As mesmas crenças que denunciam o fascismo e o bolsonarismo somam um lugar de totalidades iguais e dividem o mesmo polo de falha moral com a religiosidade acrítica. A mesma praticada por aqueles que, supostamente, nasceram com o dom de pastorear rebanhos religiosos.

Nós, da oposição, temos que admitir que pecamos em muitas ocasiões. A obsessão pela pureza moral, marca conhecida do fascismo, agiu decisivamente sobre nós, de maneira que caímos prostrados, diante da primeira derrota nas urnas. Antes da eleição de Jair Bolsonaro, a crítica da purificação ética e moral do revolucionário de esquerda, como alguém incorruptível, suicidou-se politicamente com a prisão do presidente Lula.

A superioridade moral do militante de esquerda sempre teve um apelo soberbo e intimamente classista, portanto, antirrevolucionário. Exibe uma forma de menosprezo ao sistema capitalista financeiro e um desdém sobre a artificialidade da cultura digital, (o que nos tornou incapazes e apartados da realidade).

Essa crítica voltou contra nós com uma exigência tão alta que acabou nos arruinando politicamente. Por mais argumentos que temos, estamos sufocados às arestas de um sistema econômico que nos explora e desperdiça talentos com condições de trabalho precário.

O contraponto que nos une e separa (direita X esquerda) é a nossa ausência de agir com radicalidade na transformação social, coisa que, de fato, não compromete as formas de reprodução capitalistas.

O patriota messiânico crê na política do voto a cabresto, no uso leal da compra de votos e na decomposição do Estado de direitos. Nesse sentido, a violência militar e, sobretudo, a posse de uma democracia oligárquica, deve conservar a intolerância como o “estranho familiar”, mesclando velhas estruturas de classe no poder. Nesse aspecto, Bolsonaro não decepcionou em defender a própria família ou o grupo de alianças identitárias que colaboraram com a sua vitória pela presidência.

A persona do Bolsonaro é, definitivamente, um marco que nos custará despopularizar. Será o primeiro movimento de massas que necessita ser combatido, com a devolução do direito à celebração cultural e com educação de qualidade. É preciso reabilitar a dissidência criada entre as autoridades policiais (exército, polícia civil e militar). A divisão ideológica infiltrada dentro dessas instituições alimenta comportamentos hostis que vampirizam a revolta das massas contra o resultado das urnas.

Neste sentido, quero destacar que a dimensão moral é indissociável de uma interpretação contemplada pelo universo religioso. A fé bruta que crê porque precisa, é empreendedora de igrejas e de promessas de salvação divinas. Ela criou uma semi-vida bíblica, e um Deus semiótico para apoiar a Jair Messias Bolsonaro: líder que celebra a carnificina do mercado neoliberal, enquanto sufoca a miséria da sua população. Elege a hipocrisia política como orientação social e a fome como perversão do futuro.

Foi assim que o bolsonarismo se tornou uma nova proposta de fé, de filosofia de vida, que envenena a mente e a alma daqueles que, hoje, colonizaram os nossos símbolos nacionais. Essa sensação de desapontamento e de mágoa, ao ver a estampa da bandeira do Brasil em janelas, nos carros e em estabelecimentos comerciais, é a mesma sensação de vazio que vem separando laços familiares desde 2016. Estamos esgotados e precisamos recuperar nossos vínculos. Sobretudo, sentir orgulho do nosso país. Essa Copa do Mundo trará sentimentos incomuns de perda da identidade nacional que deve ser reconstituída.

É difícil ter esperança enquanto há gente arriscando a segurança física e a dos seus filhos, para bloquear estradas com barreiras humanas. O bolsonarismo militante é o mais fervoroso por liderança e é, acima de tudo, completamente servil e estéril a novas ideias. Neste cidadão, o fascismo já operou iniquidades na alma, completando suas modificações psicológicas pela brutal indiferença política com os outros. Este eleitor não vê benefícios em agarrar-se às dúvidas, porque não admite o estado de dúvida. Lembra, de longe, aquele comportamento regressivo da infância: o de não gostar de ser contrariado quando vê que o “coleguinha” tinha mais razão do que você.

No entanto, o ato de perder corresponde a um momento incômodo de se reconectar com antigas ansiedades e frustrações pessoais. Temos que admitir que o que nos faz maus perdedores, por força do hábito, também nos enfraquece a autoconfiança e nos enrijece para o novo. Tudo que é novo é fresco e flexível por natureza, porque crescer e amadurecer requer humanidade. O endurecimento é sinônimo de fraqueza, de covardia e finitude. Devemos estar “atentos e fortes” à improvisação, sem perder o rumo nem a obstinação democrática.

A verdadeira arma ideológica do bolsonarismo age ao contrário, blindando-se contra a invasão do livre pensamento crítico, no qual a contaminação da realidade pode induzir a um estado de estarrecimento sensorial com o mundo externo. A essa altura das manifestações, admitir que foi usado em prol de um projeto de governo fascista significa ter de assumir a vergonha de ter sido manipulado de maneira estúpida e descarada. É ter de enfrentar a exposição à justiça, pelos prejuízos e crimes cometidos contra a sociedade e contra o processo eleitoral.

O problema político deixado pelo bolsonarismo se torna profeticamente inevitável quando, em importantes momentos de transição histórica, as inseguranças se unem em uma espécie de sede autoritária. Sofremos por totemizar paternalismos autoritários, por buscar formas de governo antidemocráticas que correspondam a uma versão do passado indigerível, fascista e até hoje contestado. Não erradicar a obsolescência moral presente nas instituições, na memória morta-viva daqueles que pensam conhecer o seu próprio país (através das ficções anticomunistas e fake news de extrema-direita). Por isso, reproduzem memórias fictícias, ao invés da veracidade histórica de um país ladrilhado por mortos-desaparecidos. Isso lembra a estética dos filmes de horror, sempre que se tenta aniquilar um zumbi patriótico ou qualquer mito sobrenatural, fica muito mais difícil de matar quando não se está mais entre os vivos.

*Tainá Machado Vargas é mestra em Sociologia do Direito pela Universidade La Salle, Canoas/RS. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. É colunista independente da Empório do Direito e outras Mídias digitais. Pesquisadora vinculada a Grupos de Pesquisas CNPq nas seguintes áreas: terceirização do trabalho, gênero e neoliberalismo. 

Publicado originalmente em Brasil de Fato

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