O ano de 2015 nos devolveu a esperança de um cinema nacional de qualidade e comprometido com questões sociais que precisam ser discutidas. Estamos falando do filme “Que Horas Ela Volta”, de Anna Muylaert, narra a história de uma empregada doméstica pernambucana vivida por Regina Casé e de sua filha, interpretada por Camila Márdila, e sua relação com seus patrões – uma família paulista de classe média alta.
A dupla, retratada com verossimilhança e naturalidade – sem a costumeira roupagem caricatural que se tem visto no cinema brasileiro em se tratando de representação do povo nordestino – é um retrato da história de mães de classe baixa que se veem obrigadas a abandonar os próprios filhos para cuidarem dos filhos de seus patrões.
Val – interpretada por Regina Casé – deixa sua filha Jéssica (Camila Nárdila) em Recife e passa a trabalhar como babá na casa de seus patrões, onde permanece por longos anos até reencontrar a menina, já adulta, que vai a São Paulo prestar vestibular – o mesmo vestibular que o filho de seus patrões, não por acaso.
Estamos tratando de uma obra-prima – que sem dúvida entrará para a história do cinema nacional – rica em questões contemporâneas que urgem em serem discutidas. Apesar disso, o Fantástico do último domingo – desprezando qualquer resquício de inteligência e senso crítico de seus telespectadores – preferiu classificar o filme como um retrato da relação de “amor, carinho e respeito” entre empregados e patrões.
Todo esse amor e respeito pode ser visto já nas primeiras cenas, quando Val se reporta a sua patroa para lhe fazer um pedido: “Você sabe que é como se fosse da família, querida. A lasanha está no forno?”
E recoloca seus fones de ouvido sem escutar aquela que criou o seu filho e é claro que é quase parte da família, desde que se limite a pôr a lasanha no forno e se calar. Os pobres são adoráveis e queridos desde que não se atrevam a saírem do lugar que lhes foi socialmente imposto.
A personagem interpretada – brilhantemente, diga-se de passagem – por Camila Nárdila, é um retrato de um pobre que não se contenta com esse lugar: senta-se à mesa dos patrões, refresca-se na piscina dos patrões e é aprovada num vestibular em que o filho dos patrões é reprovado. E é a partir daí que todo amor, carinho e respeito que só o Fantástico enxergou nessa história começa a se revelar tal qual ele é: uma exploração impiedosa travestida de bondade.
O filme é, antes de tudo, uma amostra do preconceito de classes velado e do lugar que está e sempre esteve reservado às classes sociais desfavorecidas – e do qual a elite resiste em abrir mão: um lugar de inferioridade e subserviência.
O amor de migalhas oferecido pelos patrões aos empregados que se dedicam a eles por uma vida inteira começa a se revelar quando a filha da empregada passa a ocupar os espaços reservados aos patrões – desde a piscina da casa grande à vaga na Universidade – exatamente como a face medonha da elite brasileira passa a ser desenhada quando parcelas pobres da população atrevem-se a ascender socialmente e passam a não precisar se submeter a relações de trabalho abusivas e às desigualdades socialmente construídas.
Como todo bom filme, este conta com uma cena marcante, arrematadora, daquelas que fazem com que caia a nossa ficha e compreendamos com clareza solar toda a lógica da história: Val, depois de notar a postura combativa de sua filha ao não se contentar com um lugar de inferioridade na presença dos patrões, usa a piscina da casa pela primeira vez em todos os anos de trabalho. A emocionante expressão de Regina Casé nos diz silenciosamente: “Eu cuidei do filho deles, da casa deles, da vida deles. Eu também mereço isso.”
O recado que só quem não deu ouvidos à Fantástica revista semanal global pôde captar é que as classes desfavorecidas estão, pouco a pouco, apossando-se daquilo que sempre lhes pertenceu e ocupando lugares que nunca antes se atreveram – e é a isso que se pode chamar de um tímido esboço da igualdade social que passa a se desenhar no Brasil.
“Cuide para que sua filha fique da cozinha para fora” é a frase-chave do filme: empregados são quase da família, desde que da cozinha para fora. É triste admitir, mas esta é também a terrível lógica do pensamento burguês: pessoas de classe baixa merecem uma vida digna, desde que da cozinha para fora. É exatamente isto que tem incomodado às elites nos tempos modernos (e que o Fantástico se recusou a enxergar): o pobre está passando dos limites da cozinha – e é este o país que nós queremos.